Afetividade e Efetividade na Arteterapia

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Afetividade e Efetividade na Arteterapia

                            “O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com a outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito.”    Nise da Silveira

O trabalho arteterapêutico possibilita o aproximar das emoções e sensações, trazendo à tona os conteúdos internos nem sempre explicáveis na linguagem verbal.  Assim sendo, é possível criar um canal de comunicação do consciente com o inconsciente, onde a mediação do arteterapeuta pode auxiliar na ativação dos núcleos sadios.

A vida psíquica ou a saúde psíquica pode ser compreendida como um fluir da energia entre o sistema psíquico formado pelo inconsciente e consciente. Na abordagem Junguiana, a teoria da energia psíquica tem como foco a compreensão do dinamismo da psique, onde os símbolos ocupam um papel fundamental na dinâmica psíquica, pois é através deles que a energia se movimenta.

             Pode-se dizer que a máquina psicológica que transforma a energia é o símbolo. Segundo Jung (2013 a), o símbolo é o elemento transformador que redireciona essa energia, fazendo-a fluir de um foco a outro. Essa energia transferida para um novo objeto simbólico exerce influência sobre a psique, ativando a imaginação, que ocorre quando a mente fica atraída por esse novo símbolo e passa a ocupar esse lugar. Neste momento, há um redirecionamento da energia psíquica num movimento de progressão. A energia circula evitando o encapsulamento, o enrijecimento e, por conseguinte, o adoecimento psíquico. Ativar esse mundo imagético, além de movimentar a energia psíquica, proporciona o autoconhecimento e a autotransformação, o que Jung (2013 b) denomina processo de individuação. E uma das formas de entrar nesse processo é através da liberação da criatividade, encontrando novas formas de comunicar-se, de estar no mundo, alimentando o imaginário, proporcionando o diálogo entre o consciente e o inconsciente, o que possibilita às pessoas uma conexão consigo mesmas.

Quando fomos convidados a ficar dentro de casa por causa do momento pandêmico, paramos de ver o dia a dia e de ter o comando de nossas vidas em nossas mãos. A imaginação, a fantasia e a criação deram lugar a um mundo onde havia incerteza e aspereza. Os clientes passaram a chegar de forma online e era perceptível que sua imaginação estava congelada e, consequentemente, a sua energia psíquica encontrava-se encapsulada, não havendo uma fluidez. Por este motivo, mostravam-se mais suscetíveis a adoecer psiquicamente. Era, então, necessário ativar o mundo Imagético, a fim de retomar a movimentação da energia. Verifica-se que momentos de crise, tais como pandemias, calamidades e lutos severos podem acabar levando as pessoas a um distanciamento do seu mundo interior; mas este encontrará um jeito de chegar à vida, manifestando-se, por vezes, em forma de adoecimento, de sintomas psicossomáticos. O trabalho arteterapêutico propicia que haja um fluir, um deslocamento dessa energia psíquica, proporcionando bem estar.

            Com o advento da pandemia, em que dormimos presenciais e acordamos online, começaram a surgir questionamentos a respeito da efetividade desse formato: seria efetivo/afetivo?  O têmenos agora tornou-se um pouco mais amplo, envolvendo duas casas. Mas, o vaso alquímico (têmenos) precisa estar fechado, sem rachaduras e com a temperatura certa para a cocção no processo terapêutico. Para que haja transformação, não pode estar frio demais e nem quente demais. Dessa forma, podemos considerar que sim, há afeto no trabalho arteterapêutico, tanto da parte do cliente, quanto da parte do arteterapeuta que está ali para acolher e dar contorno ao processo, já que qualquer tipo de conteúdo poderá surgir.

            E os questionamentos não paravam, até mesmo se seria possível trabalhar os materiais expressivos, estando cada um em seu próprio espaço. A resposta veio logo e cada vez mais nos surpreendemos com a sua efetividade. Foi preciso nos reinventarmos com a utilização de materiais e recursos existentes na casa do próprio cliente e com a descoberta de novas ferramentas digitais, auxiliando e ampliando a possibilidade e capacidade expressiva. A entrega de kits de material, enviados para a casa dos clientes, também foi um ótimo recurso, diria até acolhedor. As redes, agora, são maiores, mais amplas, incluindo outros estados, países, o mundo como uma grande teia, uma rede de Indra.

            Através das definições de Caplan (1980) sobre crise, podemos afirmar que a pandemia do Covid 19 é uma crise situacional ou acidental que se caracteriza como um evento imprevisto, que resultou em inúmeras perdas em diversas camadas para as pessoas, gerando uma maior fragilização e vulnerabilidade. Para a OMS, o conceito de saúde mental não se restringe só a ausência de enfermidades mas a um completo estado de bem estar físico, mental e social. Verificamos que era necessário propiciar ajustamentos criativos rápidos e eficazes para que as pessoas encontrassem uma forma para o enfrentamento da situação que se apresentava da melhor forma possível, pensando em diminuir o impacto no bem estar psicológico, auxiliando na qualidade de vida das pessoas, levando-as a descobrirem outros sentidos para viver.

Considerando que a neurociência afirma que os símbolos que emergem da imaginação trazem benefícios reais, que podem até nos curar de doenças do corpo e da mente, a utilização de técnicas adequadas pode propiciar fluidez na regulação da energia psíquica, favorecendo uma melhora do bem estar físico e mental. O fluxo constante da energia psíquica leva ao equilíbrio, ou seja, quando a vida humana está equilibrada, a mente consciente e inconsciente vive essa ligação, estimulando o eixo ego-self, fluindo para a integralidade.

Estes conteúdos podem ser trabalhados de diversas formas: dançando, pintando, esculpindo, escrevendo, fotografando, bordando, cantando, através de uma colagem digital, de ilustrações, de filmes, enfim, todas as formas de mídias baseadas na tecnologia, ou seja, através dos muitos aplicativos que proporcionam um caminho no processo. É necessário estar sempre aberto e perceber qual o melhor material para se utilizar, favorecendo o diálogo entre o consciente e o inconsciente, denominado por Jung (2013 c) como função transcendente.

Estamos em outro século, não podemos parar, temos que acompanhar o que o mundo apresenta: este novo formato, híbrido, presencial e online onde haverá cada vez mais acesso às tecnologias digitais e às novas mídias que possibilitam diferentes processos de criação. O poder expressivo e o potencial da criação e da arte na realidade virtual, podem levar os clientes a estarem completamente imersos, confortáveis e livres na sua criação.  Ai, entra a palavra preconceito, presente na citação da Nise, logo no início deste artigo. Não devemos ter um conceito formado sobre o novo, um preconceito. Precisamos ver e aprender o novo. Estamos num momento ímpar para a Arteterapia, sendo necessário abrir a mente e entrar nessa grande rede, nos apropriando do nosso papel, do nosso lugar.

É chegada uma nova era, o “figital”, a fusão do físico e do digital, um aumento na variedade de recursos para atuar e atingir o cliente no setting terapêutico, de acordo com suas características, demandas e necessidades pessoais, sempre com a efetividade/afetividade. Precisamos aprender este novo formato intuitivo e levar a arterterapia para o mundo e apresentar, através das evidências cientificas, a sua efetividade – e que efetividade! Constato que se for necessário falar novas línguas, utilizar novas formas de trazer a materialidade, e mostrar a comprovação da efetividade, é o que faremos. Afinal, a criatividade é o que nos move na vida.

Trago aqui a reflexão de que afetividade e efetividade caminham juntas no processo e, se eu domino a materialidade que estou utilizando, entendo a sua funcionalidade e tenho noção do objetivo que quero atingir com meu cliente, então, há afetividade/efetividade. Gosto de pensar na arteterapia através da definição, segundo a qual, é necessário olhar através do palpável, perceber o que está acontecendo além do que se apresenta ali; entrar nesse grande mundo imagético, ter acesso às diversas formas de linguagem. Os materiais dão forma ao simbólico, proporcionando uma materialidade e auxiliando na elaboração do conteúdo. Ainda verificamos resistência por parte de alguns profissionais com as mudanças para este novo formato, mas, ampliar a mente e ver através do palpável, torna-se extremamente essencial para acompanhar essas novas gerações e nos mantermos em conexão com o Mundo.

Ampliando um pouco mais a visão, o teórico Henri Corbin (1976) traz o tema Mundus Imaginalis – ou o Imaginário – um mundo intermediário onde não estamos limitados ao mundo empírico e ao mundo do entendimento abstrato. O mundo das imagens é tão real quanto o mundo dos sentidos e o mundo do intelecto.

            Considera-se que essa natureza criativa do homem é elaborada em um contexto cultural, em que a criatividade nos indivíduos possui relação com a sua saúde e também com a sociedade, ou seja, no nível individual e cultural. O processo, criativo visa possibilitar a expressão e a ampliação da compreensão do mundo, por intermédio de outra linguagem, a da arte, como instrumento indispensável à existência humana.

A arteterapia pode vir a promover a saúde mental, partindo dos simbolismos individuais que aparecem sem perder de vista a dimensão social. Traumas, fragmentações e bloqueios são marcas que ficam registradas na memória do nosso corpo e da nossa mente. E, por este motivo, precisamos dar conta de como passamos por essas situações em nossa vida, ressignificando, criando novos registros que possam minimizar os danos causados pelos impactos desencadeados em momentos de crise. Podemos considerar que se trata de um trabalho complementar, integrativo, na prevenção e promoção da saúde mental. Fazer parte do Sus (Sistema Único de Saúde), pensando no desenvolvimento de um trabalho multiprofissional para a busca da totalidade do ser é fundamental.

Concluindo, a contingência imposta à sociedade atual tornou possível a ampliação da percepção sobre afetividade e efetividade, bem como a maneira como estas se relacionam dentro da nova realidade. São muitas as potencialidades apontadas para o futuro, sendo premente a quebra do paradigma de que afetividade/efetividade não existem ou ocorrem em menor intensidade no atendimento online.

Por sua vez, o emprego de novas ferramentas digitais propicia uma conexão direta com o mundo real e, ao mesmo tempo, permite o desenvolvimento de novas habilidades, rompendo a bolha que envolve a atividade da arteterapia e a mantém num mundo à parte, isolado das demais práticas terapêuticas.

Percebemos, num piscar de olhos, como a tecnologia digital continua evoluindo e em breve trará novas possibilidades emocionantes e extraordinárias de expressão e comunicação e a arteterapia terá que ir se adaptando às novas tecnologias e integrando-as nos atendimentos.

Igualmente importante é o desenvolvimento da flexibilidade que permite ao terapeuta transitar livremente e de forma fluída entre os mundos real e digital, assumindo ambos como parte integrante de um mesmo universo, viabilizando um novo caminho para a prática arteterapêutica.

Referências:

CAPLAN, G. Princípios da psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1980.

JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica. A dinâmica do Inconsciente. 8/1. 14 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013 a.

______ A prática da psicoterapia. Psicoterapia. 16/1. Petrópolis: Editora vozes, 2013 b.

_______ A natureza da psique. A dinâmica do Inconsciente. 8/2. 10 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013 c.

CORBIN, Henri. Mundus Imaginallis -or the imaginary and the imaginal. Ano 1976.

OMS – Saúde mental – (Disponível em https://blog.uneosc.edu.br/2020/04/28/saúde-e-um-estado-de-completo-bem-estar-fisico-mental-e-social/) Acessado em: 04/02/2022.

Cristiane Gerolis

Psicóloga (CRP 05/17829). Arteterapeuta Junguiana (AARJ nº 704/0316). Especialista em Psicologia Hospitalar (UVA). Especialista em Arteterapia (POMAR/FAVI). Professora do curso de Especialização em Arteterapia e do curso Envelhecimento Ativo Subjetividade e Arte do convênio POMAR/FAVI.