Cartografias do Masculino

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Por Bernardo Arraes

“Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria do que eu quisesse ter.”

Gilberto Gil

O modus operandi do masculino está em vias de revisão, já nos dizia em outras palavras e de um modo bastante sensível e ousado a canção de Gilberto Gil, “Super-homem”, no final da década de 1970. Se por um lado, de acordo com Jung (2019), a jornada heroica nos aponta para uma vitalidade solar, símbolo masculino e fálico, necessários para uma ação consciente sobre o fazer individual e coletivo, por outro, é preciso dizer que o modo como a cultura patriarcal se desenvolveu, unilateralizando o papel do homem na sociedade, culminou em atos de barbárie e dominação que se perpetuaram ao longo da história planetária, nos sinalizando caracteres masculinos sombrios e adoecidos que seguem até a atualidade. Para Bly (1991), esses aspectos do masculino apontam para o distanciamento do herói – ou guerreiro –, que apresentariam aspectos de agressividade como autodefesa necessária à sobrevivência, e denunciariam o lugar tomado pela fria figura do matador como resultado de uma distorção e de um esvaziamento de sentidos do aspecto sagrado do herói masculino.

Ainda que, na visão junguiana, masculino e feminino estejam para além da questão de gênero, pensar sobre essas interações e sobre como homens transitam entre esses dois aspectos se faz necessário em nossa sociedade, para que seja possível a construção e o encontro com a faceta de um masculino saudável e criativo a partir do contraponto com os aspectos simbólicos e lunares do feminino – aspectos estes que podem conferir Alma ao fazer e viver do homem. Jung já destacava a importância simbólica do desenvolvimento da anima na mobilização das emoções e afetos masculinos como fator necessário para o equilíbrio da vitalidade, trazendo capacidade de ser flexível e mais humano. Ou como nos sugere a já citada letra da música “Super-homem”, de Gilberto Gil, no trecho que diz “quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória / mudando como um Deus o curso da história / por causa da mulher”.

Nesse sentido, cabe destacar a contribuição da arteterapia para essa construção, dado que, além de atender indivíduos de todos os gêneros, no caso dos homens, pode cumprir esse papel de contraponto, oferecendo a oportunidade de expressão não apenas pela fala, mas por meio de algo que poderá trazer uma experiência diferenciada, uma vez que o desenvolvimento de processos criativos irá ajudar o indivíduo a construir, por analogia, outras maneiras de se relacionar com o mundo à sua volta e com as suas questões mais profundas.

Observamos que a criatividade e a troca arteterapêutica em grupo de homens proporcionam o descortinar e o alívio das pressões sociais, oferecendo, a partir do encontro entre iguais, um espaço para reflexão que possibilita o contato com as emoções e os desejos mais profundos, numa cartografia que promove pistas dos possíveis elos perdidos referentes aos núcleos saudáveis da psique masculina. Afinal, descobrir-se como um ser criativo por intermédio da arteterapia poderá favorecer o sujeito a encontrar o movimento capaz de gerar, segundo Philippini (2013), o desenvolvimento de núcleos saudáveis da psique, sendo, assim, um recurso terapêutico de excelência. Nesse sentido, a expressão criativa desponta a partir da construção de metáforas, modos diferentes de olhar, fazer e se relacionar com os outros e com o mundo, contribuindo para o processo de individuação dos homens.

De acordo com Barros, “(…) através deste importante núcleo de criatividade presente em nossa psique, temos a possibilidade de enfrentar a tarefa que a nós se impõe – a individuação. Sem criatividade, nada podemos, uma vez que precisamos do novo para alcançar, se não o objetivo, pelo menos o caminho.” (2016, p. 11).

Desta maneira, encontramos alguns indícios de caminhos possíveis para a desconstrução do antigo modo dos homens exercerem o seu papel no mundo, podendo aos poucos buscar uma nova realização naquilo que diz respeito ao ato de criar, cuidar, relacionar-se, e transformar-se num contínuo processo de integração. O cuidado em suas diferentes dimensões, por exemplo, pode apontar caminhos para o autocuidado, o cuidado com os outros, com a família, com a sociedade de um modo geral, se estendendo para a reflexão sobre as nocivas marcas já deixadas no planeta, contribuindo para a construção de um novo modo desse masculino se expressar no mundo.

Desse modo, os aspectos que se referem a interações inspiradas no feminino podem proporcionar novas experiências para um antigo modo masculino predatório, ainda presente em uma sociedade que já está cansada do modelo “machista medieval”. É possível encontrar nuances e muitos outros modos de ser e de expressar a masculinidade para além do falido “código de Hamurabi” – o famoso “olho por olho, dente por dente”.

Assim, na experiência dos grupos arteterapêuticos, entre outros temas de interesse, poderão ser promovidos diálogos sobre os limites entre a violência, a raiva e a agressividade, no sentido de alcançar novos aprendizados e caminhos para expressões que não culminem em violência generalizada, mas que reaproximem os indivíduos da faceta dos heróis sagrados, defensores da vida e da diversidade como uma das expressões do cuidar.

Além disso, os encontros poderão promover novos vínculos de amizade entre os homens, a conscientização de aspectos importantes a partir dos diferentes pontos de vista expressos pelo próprio grupo, além de outros modos de simbolizar e ritualizar.

Um dos aspectos facilitadores para essas reflexões serão encontrados na própria experimentação dos materiais, a partir do diferente ou pouco usual, como, por exemplo, é o caso do bordado livre, ainda alvo de preconceito entre os homens. A lida com a linha e o bordado poderá abrir espaço para se reconhecer a ancestralidade, as heranças, diferentes percursos, trajetórias, medos e angústias traçados no percurso da(s) vida(s)… Quem sabe assim, pode-se superar o falso “mito binarista” que defende o que é do fazer feminino e o que é do fazer masculino, promovendo vias de integração entre esses dois polos opostos mas, ao mesmo tempo, complementares.

Acreditamos, dessa maneira, que outras linhas de interações poderão ocorrer, mapeando novos territórios afetivos, pontuando e sinalizando pistas, desfazendo traçados antes endurecidos, criando linhas – mais flexíveis e inovadoras – que irão ajudar a compor o desenho de outras masculinidades possíveis no decorrer do processo de individuação dos homens.

1 – Bernardo Arraes é arteterapeuta (AARJ – 813/0717), especializado em Psicologia Junguiana (IJRJ/UNESA, 2022), Arteterapia (Clínica Pomar/FAVI, 2019), e Arteterapia para Educação e Saúde (UCAM, 2004). Atualmente faz parte da equipe de arteterapeutas da Clínica Pomar de Arteterapia (Rio de Janeiro), onde realiza atendimentos individuais e em grupo, oficinas e aulas em arteterapia. Além disso, possui formação e larga experiência profissional na área de artes, cultura, educação e saúde.

Referências bibliográficas

BOLEN, Jean Shinoda. Os deuses e o homem: uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos.São Paulo: Paulus, 2002.

BLY, Robert. João de ferro: um livro sobre homens. Rio de Janeiro: Campus, 1991.

CHINEN, Allan B. Além do herói: histórias clássicas de homens em busca da alma.São Paulo: Summus, 1998.

JUNG, C. G. Aspectos do masculino. Petrópolis: Vozes, 2019.

MULLER, Lutz. O herói: a verdadeira jornada do herói e o caminho da individuação.São Paulo: Cultrix, 2017.

PHILIPPINI, Angela. Cartografias da coragem. Rio de Janeiro: WAK, 2013.

SALLES, Carlos Alberto Corrêa. Somos feitos da matéria dos sonhos: uma nova visão da masculinidade. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1998.

BARROS, Rose Mary Kerr de. Criatividade e a criação. Disponível em: <https://bit.ly/3IlrhXn.> (Acesso em 19 de maio de 2022).