Primeiros socorros arteterapêuticos e humanitários

postado em: Blog | 0

Tema: Intervenções em arteterapia no contexto de emergência humanitária e desastres naturais

Título sugerido: Primeiros socorros arteterapêuticos e humanitários

Por Denise Garófalo Fonseca

Um piscar de olhos. Inspirar. Expirar. Dar um passo. Desenhar um ponto na folha de papel. O tempo dessas ações é o necessário para mudar uma vida.

Quando um evento com potencial traumático acontece, nada mais continua sendo como era antes. Cada pessoa o vivencia de forma única e subjetiva. O trauma começa o seu processo de maturação que pode ser interrompido a qualquer momento. As formas de enfrentamento que cada indivíduo possui é que nortearão este desenvolvimento.

O texto a seguir discorrerá sobre como a arteterapia pode mediar este processo de ressignificação, tanto com o objetivo preventivo, de não geração de traumas, quanto regenerativo em traumas já consolidados.

O possível desenvolvimento traumático está intimamente interligado com as fases do desenvolvimento humano e suas estruturas em crescimento ou já estáveis.

Segundo RUF, “se estamos saudáveis, o Eu integra o que experienciamos em nossa biografia, toma iniciativa, regula e controla emoções, impulsos volitivos e de ação, assim como processos do pensar”, (2021, pág.77).  Em contraponto, se estamos vivenciando uma situação com potencial traumático, o comando do nosso corpo passa a ser dado por nosso cérebro primitivo, que nos restringe basicamente a duas ações: lutar ou fugir. As conexões saudáveis entre o sentir, pensar e agir ficam emaranhadas ou desconectadas, trazendo um desequilíbrio psíquico e consequentemente um Eu desestruturado.

O contexto de emergência humanitária se diferencia em vários aspectos: da intensidade, duração e causa do evento até a idade, cultura e local de moradia das vítimas e principalmente a disponibilidade de fatores de proteção que cada uma delas possuem. A vivência de um evento com potencial traumático apresenta as pessoas em sua extrema vulnerabilidade que, conforme BROWN, “(…) não é fraqueza; e a incerteza, os riscos e a exposição emocional que enfrentamos todos os dias não são opcionais. Nossa única escolha tem a ver com o compromisso”, (2013, pág.11).

Quando o trauma se instaura a relação com o ambiente e com o próprio corpo se desconectam. Muitas vezes, o corpo se apresenta tão marcado e ferido que a pessoa quer se afastar dele com tentativas de automutilação e autoextermínio. O corpo físico e todo o seu ritmo homeostático e sistêmico necessita dos primeiros socorros tanto médico, psicológico e simbólico, este último tratado aqui como primeiros socorros arteterapêuticos.

A Arte e suas interfaces disponibilizam inúmeras técnicas artísticas expressivas que são grandes aliados neste processo de transformação biopsicossocioespiritual das pessoas que viveram uma situação com potencial traumático. O Arteterapeuta, nos contextos de emergência humanitária e desastres naturais, é um cuidador pela Arte.

A experiência, o significado da situação em sua biografia, a resiliência, os fatores de proteção e práticas de autocuidado e desenvolvimento pessoal é que serão os norteadores desse processo para o reestabelecimento ou a manutenção do desenvolvimento saudável das pessoas que vivenciam grandes catástrofes e desastres naturais.

Tanto o autocuidado quanto o se permitir ser cuidado pelo outro se torna uma ação diária necessária para o reestabelecimento das relações consigo mesmo e com o mundo externo. Faz-se necessário ressaltar que nem todas as pessoas que vivenciam uma situação com potencial traumático serão pessoas traumatizadas.

Quando o arteterapeuta inicia o seu trabalho, logo após o evento ou até três meses depois, compreende-se que é possível se estabelecer um caráter preventivo de não consolidação do trauma. Após este período, os desafios serão maiores para se oferecer vivências de segurança, proteção e confiança que são essenciais para não se gerar psicotraumas. A todo o momento, o lado saudável pode combater o lado em desequilíbrio.

Quando nada mais é como antes, abre-se espaço para o novo criativo, diferente e por isso a vivência de eventos com potencial traumático pode ser uma oportunidade. Oportunidade de termos consciência da nossa vulnerabilidade, assim como a confirmação dos recursos criativos existentes em cada um de nós.

A arteterapia estimula esta criação de novas estruturas e conexões criando uma rede de pensamentos, sentimentos e ações que se fortalece à medida que as pessoas assumem o compromisso da superação.

A arteterapia faz uso de diversas técnicas expressivas como:  pintura, desenho, sons, música, modelagem, colagem, mímica, tecelagem, expressão corporal, escultura, dentre outras e pode ser desempenhada para todas as idades. O arteterapeuta utiliza como sua principal ferramenta de diálogo, as imagens e expressões não verbais, sendo este um caminho expressivo e constitutivo para todos.

O espaço onde ocorrerá as intervenções arteterapêuticas precisa se situar em locais seguros (distante da área do evento, se possível) para gerar conforto, proteção e confiança. Caso as práticas sejam realizadas de modo virtual, confirme com o assistido se aquele local lhe proporciona estas sensações e acione a rede de apoio presencial, caso seja necessário, para que se encontre este local seguro.

Após o local seguro, inicia-se com a ambientação e estímulos neste espaço. Aconchego e muitas vezes a beleza estética, com materiais que têm cores também facilita a conexão com algo novo, diferente das imagens que se fixam quando há uma catástrofe. O estímulo pelo arteterapeuta para buscar algo que lhe seja inovador nas suas habilidades, também possibilita a inovação na relação criativa com o assistido.

Os primeiros encontros podem ser caracterizados como primeiros socorros arteterapêuticos e abrangem, inicialmente, as técnicas mais simples de desenhos e/ou colagens, com o objetivo principal de catarse e conhecimento dos fatos e sensações trazidos pelos assistidos. A postura do arteterapeuta é de uma escuta conectiva, de ouvir a história das pessoas, sem perguntar diretamente ou pressioná-las a falar sobre sentimentos e reações que tiveram em relação ao evento. Este interrogatório em busca dos fatos é conhecido como debriefing psicológico e foi considerado ineficaz e com potencial de se gerar um segundo dano, segundo as diretrizes do IASC (Comitê Permanente Interagências, 2007) sobre Saúde Mental e Apoio Psicossocial em Emergências Humanitárias.

A escuta conectiva é um exercício mútuo do assistido e arteterapeuta para ouvir, entender, interpretar e reagir. O movimento é colaborativo de compreensão das palavras e imagens trazidas para o fim elaborativo e de ressignificação. Somente após esta conexão se propõe uma interpretação e/ou reação. Cada passo pode ser traduzido pela linguagem artística e simbólica.

O processo curativo e criativo da arteterapia basicamente perpassa a transformação das imagens registradas de forma ativa e concreta. Há a materialização dos sentimentos, imagens da vivência e por causa da maleabilidade e flexibilidade dos materiais é possível transformar algo muito duro, por exemplo, massinha feita com cera de abelha, em algo leve, quentinho e de forma criativa pode gerar qualquer outra imagem mais confortante. A escolha dos materiais para cada encontro é de suma importância e tende-se a oferecer nas primeiras sessões várias possibilidades de linguagens artísticas diferenciadas e ir percebendo com qual a pessoa se sente mais à vontade. A partir daí podemos entender que conectamos com um ponto que lhe é saudável e a partir dele vamos descobrindo junto com os assistidos quais outros recursos são possíveis. Dentre aqueles que já se tem e pode potencializar ou mesmo conhecer novas formas.

É de suma importância a compreensão de como eram os movimentos saudáveis antes do evento, com o intuito de se ter clareza de quais são os potenciais de cura daquela pessoa e como pode ser resgatado e reconstruído para o aqui agora.

Em todas as sessões é necessário que se estabeleçam rotinas de horários, ritmos de desenvolvimento e rituais de início e fim. Qualquer abertura que se faça no encontro é necessário que se feche ali. É importante mostrar que o trauma gera lacunas e/ou congelamentos, logo, evita-se trabalhar com materiais que têm muito vazio e pouca consolidação.  Entretanto, não há restrição de quais materiais utilizar e sim conseguir ler e perceber durante o processo quais caminhos aquela pessoa está te levando e seguir junto com ela. Ao perceber que terá obstáculos ou abismos no caminho, seja o propositor de outras rotas e não aquele que prive ou coíbe. Seja um construtor de imagens e palavras sanadoras.

Nos espaços de assistência humanitária as perdas e o luto podem ser temáticas emergentes. Promover qualidade de vida é o principal foco para se compreender a regeneração afetiva, principalmente pelo resgate de sonhos e propósitos como norteadores. Caso o trauma esteja presente de forma depressiva ou raivoso, traga o ideal para o concreto. As reflexões passam mais pelo como (que gera ação motivadora) do que por quê ou para que (que trazem justificativas e explicações).

Ao final do processo um farol de efetividade da arteterapia como promotora de bem-estar, melhoria da qualidade de vida e de resiliência pode ser medida por testes validados no Brasil como a Escala de Resiliência de Connor-Davidson para o Brasil (RISC-Br) citado em BÖELL (2016) e o WHOQOL-Bref elaborado pela Organização Mundial de Saúde (WHO). Entretanto, a arteterapia tem uma função primordial de equilíbrio e reorganização simbólica destas vivências, logo, o medidor dos resultados passa também por relatos que se integraram à biografia dessas pessoas de forma adaptativa e superada.

Para exemplificar trago o relato de uma história vivenciada por uma senhora idosa que perdeu o filho no rompimento de uma barragem de rejeitos de minerais. Ela participou de um grupo arteterapêutico no formato virtual/online. A condução do grupo foi feita por uma arteterapeuta especialista em tanatologia e eu dava apoio por meio de estudos de casos, quando havia uma maior desestruturação psicológica dos assistidos. Este espaço de troca de saberes e olhares entre arteterapeutas é uma base importante para a construção de um círculo de acolhimento arteterapêutico em emergências humanitárias, além de se instituir uma possibilidade de cuidar de quem cuida.  

Retomando a exemplificação, nas sessões iniciais, essa senhora se apresentava muito chorosa e com o relato de que não podia ser mais feliz depois da morte do filho. Estar bem para ela e para os olhares das outras pessoas era uma afronta ao filho que havia falecido de uma forma tão brutal. Os desenhos expressos traziam imagens sem forma e bem emaranhadas. No decorrer do processo arteterapêutico, essas imagens foram ganhando forma até que em uma sessão em que foi feita a técnica do mosaico, oferecendo pequenos pedaços coloridos de papel, ela construiu um pássaro. Segundo ela, um beija flor dedicado ao seu filho que lhe devolveu a liberdade de viver. A saudade do filho foi incorporada na sua biografia junto da vitalidade. Ao final do processo, ela conseguia falar do filho, sem choro e retomou os cuidados de saúde.

Relatos de histórias como esta são validadores legítimos de que a arteterapia proporciona espaços de estabilização simbólica e são essenciais em contextos de assistência humanitária e desastres naturais.

Para finalizar, podemos depreender que a vivência de eventos com potencial traumático são experiências do limiar e muitas pessoas que as ressignificaram falam de um verdadeiro crescimento interior. “Apesar de tudo, somos saudáveis”. “Apesar de tudo, sou feliz.”

Referências bibliográficas

– BÖELL, JEW, Silva DMGV, Hegadoren KM. Sociodemographic factors and health conditions associated with the resilience of people with chronic diseases: a cross sectional study. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2016;24.

– BROWN. Brené. A coragem de ser imperfeito. Ed. Sextante, 2013

– IASC – Inter-Agency Standing Committee (Comitê Permanente Interagências). Diretrizes do IASC sobre saúde mental e apoio psicossocial em emergências humanitárias. Tradução de Márcio Gagliato. Genebra: IASC, 2007

– RUF, Bernd. Destroços e Traumas: embasamentos antroposóficos para intervenções com a pedagogia da emergência/ Bernd Ruf; tradução Edith Asbeck.3ª ed. São Paulo: Antroposófica, 2021.

– WHO- World Health Organization (Organização Mundial de Saúde). WHOQOL-Bref Medindo a Qualidade de Vida- in https://www.who.int/tools/whoqol/whoqol-bref/docs/default-source/publishing-policies/whoqol-bref/portuguese-brazil-whoqol-bref. Acessado em 17 de julho de 2022.

Denise Garófalo Fonseca – Psicóloga (UFMG), Arteterapeuta (Integrarte/BH), Especialista em Cuidados Paliativos e Terapia da Dor (PUCMINAS), Mestranda em Psicologia Clínica e da Saúde (UNEATLANTICO – Espanha). Cursando a Formação Integral em Pedagogia da Emergência. Ampla experiência em áreas de risco e vulnerabilidade social com prevenção e promoção da saúde e remoção e reassentamento de famílias. Atualmente trabalha como Analista Social, na gestão da equipe que realiza o acompanhamento de famílias que perderam seus entes queridos e/ou moradias em contexto de assistência humanitária.