Arteterapia nas travessias com crianças migrantes e refugiadas

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Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo…

(A ilusão do migrante. Carlos   

 Drummond de Andrade)

A questão migratória no mundo contemporâneo tem se tornado uma das problemáticas humanitárias mais complexas e críticas dos últimos anos. A migração infantil nesse contexto tem sido um grande desafio, com questões a serem discutidas, refletidas e transformadas.

 Segundo a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) o número de crianças refugiadas e migrantes cresce exponencialmente a cada ano no mundo todo e atingiu um recorde, aumentando quase cinco vezes desde 2010. Além dessa problemática, soma-se a tragédia do deslocamento forçado de crianças sem as suas famílias. Pelo menos 300 mil crianças desacompanhadas e separadas de suas famílias foram registradas em cerca de 80 países no biênio 2015-2016, contra 66 mil em 2010-2011. (UNICEF, 2015/2016).

         Segundo a conceituação da ACNUR (Agência da ONU- Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), são refugiadas as pessoas que se encontram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possam (ou não queiram) voltar para casa. Posteriormente, definições mais amplas passaram a considerar como refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos, como o pequeno Jonas da história. (ACNUR, 2016).

         Já os migrantes escolhem se deslocar, não por causa de uma ameaça direta de perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar sua vida em busca de trabalho ou educação, por reunião familiar ou por outras razões, muitas vezes também marcadas por situações de vulnerabilidade extrema e ameaças a vida. À diferença dos refugiados, que não podem voltar ao seu país, os migrantes continuam de alguma forma sob proteção do seu governo e, em tese, podem retornar se quiserem. (ACNUR, 2016).

Questões socioemocionais das crianças nas travessias

Só é meu
O país que trago dentro da alma.

 Entro nele sem passaporte
Como em minha casa…
As ruas me pertencem.
Mas não há casas nas ruas.
As casas foram destruídas desde a minha infância.
Os seus habitantes vagueiam no espaço
À procura de um lar.

                                                                                                                       Marc Chagall

As crianças migrantes e refugiadas estão sujeitas à perda de referenciais, de vínculos, da estrutura social e cultural. Essas são algumas das questões que se associam muitas vezes a processos ligados à guerra, violências, abusos psíquicos e físicos, somadas as vulnerabilidades sociais, fome, frio e outras questões básicas ligadas a sobrevivência humana. A migração forçada e os acontecimentos difíceis que a acompanham desenraizam as pessoas das suas vidas e histórias, e as transplantam arbitrariamente de suas terras para o exílio. A ruptura e esse vivenciar da extirpação podem ser desafios difíceis, tanto emocional quanto concretamente, de serem enfrentados. São inúmeros os “exílios” nas diásporas: exílios do corpo, das coisas, dos lugares, mas principalmente exílios psíquicos que podem causar tremores na alma.

Esse “traumatismo de exílio” como vemos sendo abordado no contexto da etnopsiquiatria, pode levar a consequências psicológicas e até mesmo perda da continuidade de si em adultos e crianças

A experiência de estar num “não lugar”, se mistura a própria existência de se sentir “sem lugar”, indesejado.

Cada deslocado, cada refugiado carrega dentro de si a experiência de um ser indesejável, sem lugar. Experiência vivida desde o acto original de perseguição violenta, depois pelas provações e complicações do êxodo, ainda sentida face aos governos que se recusam a registrar ou a ajudar as populações deslocadas dentro do seu próprio país. Outros governos, mais ou menos obrigados a permitir a entrada de refugiados no seu território, recusam-se a dar-lhes o estatuto de refugiado nacional e tentam negociar a sua saída com organizações internacionais. (AGIER, 2002, p.53, tradução nossa).

Em meio a esses cenários, que podem em alguns momentos parecerem acinzentados e sem cor, a arteterapia pode ser um importante recurso para ir colorindo as pequenas almas feridas e trazendo luz onde as sombras insistem em querer achar lugar.

Qualquer forma de atividade artística pode ajudar as crianças a lidar com seus traumas. Pintura, desenho, modelagem, teatro e música são meios de expressão benéficos, que permitem que as crianças representem as experiências de estresse e eventualmente consigam curar suas feridas anímicas. (RUF, 2014, p.127).

A Arteterapia abre um campo de possibilidades de trabalho com crianças refugiadas e migrantes que poderá ser extremamente benéfico nos contextos em que estão inseridas e frente aos novos desafios que as mudanças e perda de referências acarretam.

O processo arteterapêutico permite que simbolicamente e de forma perene, através de atividades expressivas diversas, sejam retratadas com precisão as sutis transformações que marcam o desenrolar da existência, documentando seus contínuos movimentos do vir a ser, que se configuram e se materializam conflitos e afetos. (PHILIPPINI, 2013, p.14).

As experiências traumáticas nos desorganizam interna e externamente e nos causam dor e desconforto. As mudanças extremas a que as crianças refugiadas são submetidas podem gerar o sentimento de perda completa do mundo como um lugar seguro, as mudanças físicas, a perda da escola, dos amigos, de parentes, a xenofobia. Tudo isso associado muitas vezes ao intenso sofrimento psíquico dos cuidadores.

A arteterapia pode ser utilizada nesse contexto como uma dessas âncoras favorecedoras da resiliência. Os núcleos de experiência positiva e os fios de esperança e de confiança que a criança ainda possui, através da arte e dos trabalhos manuais, podem gerar cura para a alma, ativar sua capacidade de imaginar o mundo e recriá-lo, tirando o foco dos pensamentos ou flashbacks ligados a experiências angustiantes e traumáticas. (KRUGER, 2012).

A força da nossa imaginação, segundo Ostrower (1997), nos auxilia a associar novos eventos a objetos. Um mundo imaginativo enriquecido pode salvar as crianças de processos de estresse pós-traumático e outras questões de enfraquecimento emocional. A imaginação remodela nossa mente, reinventa nossos olhares e vínculos com passados difíceis e pode mudar os rumos das histórias individuais e coletivas. A força da arteterepia e do potencial criativo é imensa, não por acaso a arte é sempre uma das primeiras inimigas dos sistemas opressores e ditatoriais.

Seu caminho, cada um o terá que descobrir por si…Andando, o indivíduo configura o seu caminhar. Cria formas, dentro de si e em redor de si. E assim como na arte o artista se procura nas formas da imagem criada, cada indivíduo se procura nas formas do seu fazer, nas formas do seu viver. Chegará a seu destino. Encontrando, saberá o que buscou. (OSTROWER, 1997, p.76).

Breve relato de uma experiência concreta de arteterapia e crianças refugiadas

A partir de um trabalho arteterapêutico com crianças refugiadas venezuelanas realizado em 2021 na fronteira com a Venezuela, pudemos constatar o potencial promotor de saúde mental da arteterapia com esse público específico.

 A partir de um referencial simbólico dos tempos da migração, o antes (o local de origem e as memórias); o aqui-agora (a Chegada no novo país e os desafios presentes) e o amanhã (o futuro, suas perspectivas, medos e desafios no novo país) construímos atividades arteterapeuticas em settings improvisados em abrigos de refugiados em Pacaraima- RR. Como principal estímulo gerador trabalhamos o  Conto “O Reino do Aqui”, escrito e ilustrado a partir das histórias de migração das crianças venezuelanas.

Ao final do processo arteterapêutico constatamos como as crianças apresentavam diferentes sinais de saúde emocional e mental e o fortalecimento da sua resiliência. Mostravam maior concentração e organização rítmica, a expressão física e as emoções se mostraram positivamente modificada. Algumas crianças que estavam num processo quase de “catatonia” e “dissociação” se mostravam alegres e interativas ao final, sorrindo e brincando. Constatamos uma diminuição da agressividade e aumento do trabalho com os pares de forma harmônica além da percepção mais positiva sobre si mesmo e sobre sua autoimagem.

Percebemos que o trabalho arteterapêutico com crianças refugiadas auxilia no fortalecimento psíquico e da capacidade criativa, bem como cria possiblidades de narrarem simbolicamente as agruras da migração. Esses fatores mostram-se como fortes elementos criadores de resiliência para as crianças.

Os processos arteterapêuticos podem ir colorindo as pequenas almas feridas e escutando as vozes dos seus corações num tempo histórico em que temos quantidade nunca vista de almas infantis errantes. Esses processos que aliam a criatividade à questões tão profundas da dor humana podem ser profundos espaços de encontro e transformação pois ”o processo criativo é um caminho espiritual. E essa aventura fala de nós, de nosso ser mais profundo…é descobrir a voz do coração”.  (NACHMANOVITCH, p. 24, 1993).

Silvana Bezerra de Castro Magalhães

Professora CEFET-RJ. Formada em Pedagogia (Unicamp), mestrado em filosofia da educação (Unicamp), doutorado em educação (UFF).Pôs graduação em Arteterapia- Pomar. Pesquisadora na área de Sociologia da Infância e coordenadora do GEPICES (Grupo de Estudos e Pesquisas em Infâncias, Culturas, Educação e Sociedade). Experiência voluntária em ações humanitárias no Oeste da África e com crianças migrantes na Fronteira Brasil- Venezuela.

Referências Bibliográficas

ACNUR. Disponível emhttps://www.acnur.org/portugues/2016/03/22/refugiados-e-migrantes-perguntas-frequentes/ Acesso em 10 de maio de 2022.

AGIER, M. Aux Bords du Monde, le réfugiés. Paris: Flammarion, 2002.

ANDRADE, C.D. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1983.

KRUGER, Andreas. Primeiros auxílios para niños traumatizados. Espanha: Editora Desclée De Brouwer, 2012.

MAGALHÃES, S.B.C. O Reino do aqui. Nova Friburgo-RJ: Sabor de Leitura, 2020.

NACHMANOVITCH, Spephen. O ser criativo: o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus Editorial, 1993.OSTROWER, F. Criatividade e processos criativos. Petrópolis: Editora Vozes, 6. ed.1997.

PHILIPPINI, A. Para entender arteterapia: cartografias da coragem.5.ed. Rio de Janeiro: Editora Wak, 2013 .

RUF, Bernd. Destroços e Traumas. São Paulo: Editora Antroposófica, 2014.

UNICEF. Uma Criança é uma Criança:  Proteger as crianças em movimento contra a violência, abusos e exploração”, Relatório biénio 2015-2016.