O ARTETERAPEUTA E A ARTETERAPIA DECOLONIAL
Por Rosangela Rozante
A colonialidade, sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo[…]opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos. (Quijano)
O Brasil, um país pluriétnico e multicultural, inclui brancos, amarelos, indígenas, negros e povos ciganos entre outros, por isso, faz-se necessário um olhar aberto às questões étnicas e raciais que possam demandar trabalho arteterapêutico. Há uma problemática social, que exclui povos considerados diferentes, mantendo uma hegemonia colonial, que privilegia uns em detrimento de outros.
O povo brasileiro é caracterizado pela miscigenação, pela mistura de grupos étnicos. A diversidade da população brasileira é resultado de pelo menos 500 anos de história e se deu, através da combinação de basicamente, três grupos: os indígenas (povos nativos), os brancos (sobretudo os portugueses) e os negros (africanos escravizados).
É necessário que todo Arteterapeuta se aproxime desta temática com o objetivo da expansão de sua consciência e da de seu paciente. Uma Arteterapia decolonial é um desafio extremamente necessário para proporcionar saberes epistemológicos artísticos milenares, diferenciando saberes instituídos pela colonização.
Faz-nos humanos, o desejo de reconhecimento e representação, porém, na própria classe de Arteterapeutas, encontramos baixa representatividade étnicoracial. Percebemos que há uma ruptura com a realidade brasileira que também é vista nas instâncias de poder, onde a grande maioria é representada por brancos ou por aqueles que assim se consideram. Esta ruptura é marcada, também, pela grande ênfase dada a saberes considerados oriundos de raças superiores, que entendem o primitivo, o arcaico, como manifestação de culturas inferiores. Ruth Frakenberg (1999, p.43), analisa o lugar que as pessoas ocupam segundo sua condição social, independentemente de sua classe social, e classifica como “geografia social de raça”, mostrando que há delimitações destes lugares, que fomentam um pacto narcísico, hegemonicamente branco, como “raça superior”.
O Brasil, país de origem de povos indígenas, em suas diversas etnias, produz através de sua cultura, uma arte representada na dança, na pintura, na música, na cerâmica, na madeira, na produção de máscaras, na tecelagem e na fiação. Assim, essas populações confeccionam joias com plumas de aves e contas que enfeitam seus corpos. Pintam seus corpos e seus rostos em rituais importantes, onde utilizam varetas, penas, os dedos de mãos e pés, empregando resinas vegetais para obtenção da cor. Produzem, também, mandalas, carimbos de madeira ou de barro cozido para seus rituais de iniciação que envolvem o acesso à sua mitologia de encantados – seres divinos ligados à natureza, a suas festas e rituais de passagem, marcados por sua etnia. Se não tivermos acesso a estes saberes, como poderemos acessar a memória ancestral de um indígena? Os símbolos, carregados de energia psíquica, trazem histórias pessoais e a ancestralidade de povos originários, muitos deles, que se tornaram invisibilizados pelo capitalismo e eurocentrismo e que, encontram-se em minorias, como ocorre com indígenas, povos ribeirinhos, quilombolas, ciganos e negros afrodescendentes. que, em sua maioria, vivem nas periferias e, de certa forma, excluídos. Considerando a simbologia e os aspectos arquetípicos, Roberto Gambini (2014) em “A Alma Ancestral Brasileira”, mostra a índia brasileira como a nossa Grande Mãe. Já Ailton Krenak (2019) sinaliza que os indígenas respeitam a natureza numa conexão familiar, ao fazerem uso dos recursos que ela disponibiliza para a vida. O desrespeito à natureza é o desrespeito à Grande Mãe que nos alimenta e que tem seus aspectos sagrados. A importância de estudos decoloniais tem o objetivo de nos libertar da produção de conhecimento de epistemologias puramente americanas ou eurocêntricas.
As experiências traumáticas acompanham a biografia pessoal de cada pessoa que nos procura. No pensamento de Lélia Gonzalez (1988 p.73), o racismo atua como uma neurose cultural brasileira. Para sobreviver ao racismo, à exclusão que ele provoca, algumas vias sublimatórias vão sendo usadas, como o humor, a música, a dança. A expressão da dor através da arte, como uma busca de pedido de ajuda e superação, vem mostrando como se expressar e reagir à exclusão provocada pelo trauma, daqueles que se sentem diferentes. Usar os materiais e técnicas adequados, a que todo Arteterapeuta pode ter acesso em sua formação, é extremamente necessário, porém, é importante pesquisar sobre o enredo que envolve a vida de cada paciente que nos procura.
Buscar mestres nativos que possam ensinar, vai proporcionar a saída de um formato padrão e o avanço em territórios ainda pouco explorados, inclusive com alguns materiais. A associação ao uso de máscaras, por exemplo, é bastante reportada ao teatro grego. Cabe saber, porém, que para diversas etnias indígenas, elas têm uma função religiosa que permite ao seu portador, ser reconhecido como um espírito maligno ou, em outras situações, ser portador de dons divinos. Trago a mesma reflexão para a sabedoria dos povos ciganos, também discriminados, que expressam muitos elementos étnicos de sua cultura e ancestralidade. Os primeiros espetáculos circenses surgiram com os ciganos, povos nômades vindos da Europa e que chegaram ao Brasil durante o período colonial (sec. XVIII). Traziam a dança, as acrobacias, o ilusionismo, a arte de manejar bonecos e a comédia teatral. Por acontecer em ambiente circular, como uma grande mandala humana, reforçavam a experiência corporal (sensório-motora) que é a base para a construção identitária de qualquer tipo de conhecimento. Phillipini pontua que “a imagem do círculo está presente no imaginário humano desde tempos ancestrais” (2011, p.11). Segundo Menini (p.151-155), com a chegada da arte cigana ao Brasil: […] “Os grupos ciganos tradicionalmente se dedicavam às apresentações artísticas como a dança, a musicalidade instrumental e às artes mambembes. Esses talentos artísticos foram historicamente agenciados pelos ciganos e pelas ciganas para a corporificação de suas memórias e para a construção de suas identidades étnicas”. […} As artes ciganas foram transmitidas de geração a geração e foram agenciadas pelos diversos grupos ao longo dos séculos de colonização no Brasil. […] Os espetáculos ciganos descritos pela linguagem dominante da época indicam a reelaboração de estereótipos e de construções identitárias de gênero na sociedade colonial, associando os ciganos e as ciganas a legítimos artistas, aplaudidos e elogiados pelo público em diversas festividades. A performance através do colorido de seus trajes, sua dança, sua música, seus símbolos e ritos de passagens, apresentado na arte a expressão de sua ancestralidade.”
No trabalho de um Arteterapeuta, onde a imagem se propõe compor um jardim de lembranças, pude ouvir de uma paciente o porquê buscou a dança cigana em sua vida adulta. Sua associação foi trazida pela memória afetiva de sua infância, com a tia materna, que tinha uma relação direta com o povo cigano. Suas referências em relação ao povo cigano se manifestavam não só quanto às roupas que gostava de usar, como também ao fato de se sentir nômade, de deslocar-se em seu trabalho para grandes distâncias, sem desejar fixar-se e ao manter sua relação com a dança e com o respeito pela sabedoria oracular que sempre buscou. Ao nascermos não sabemos como será a nossa vida. Seguimos em direção à expansão e à totalidade de nossa identidade. O mundo real, a partir de tudo que nos cerca, é conectado ao que entendemos como consciência. O racismo alimenta as diferenças, não potencializa a criatividade e nem abarca como inclusão, as multiplicidades. Por ser Arteterapeuta, mulher negra, sinalizo que o racismo estrutural brasileiro (ALMEIDA, 2018) que se expressa no meu trabalho como Arteterapeuta, provavelmente vai se expressar também no seu, ainda que você não seja negro. O racismo é um processo dinâmico por ter a capacidade de se transformar, de criar formas surtis de expressão e sempre se atualizar, isentandose das situações que ele provoca. Nos estudos até então realizados no Brasil, a bagagem escravista e colonial produziu registro de sofrimento psíquico, acionou um trauma geracional, que marginalizou as manifestações de ancestralidade africana e sua arte negra. Seguiu atingindo crianças, jovens e adultos negros, pela experiência diária do racismo, Assim, creio que todo Arteterapeuta deveria atentar para o racismo estrutural, pois o problema não é a cor, é o fato da cor ser de origem africano-negra, retirando o negro do seu grupo de origem e colocando-o em outro “embranquecido”, onde, para ser aceito socialmente, o negro necessita embranquecer e se adequar a outros saberes, estéticas e conceitos, de hegemonia branca.
Em Arteterapia não buscamos a estética nem o ideal de beleza aceito. Astécnicas e os materiais utilizados em Arteterapia precisam viabilizar conteúdos oriundos das expressões do inconsciente, para a luz da consciência. Necessitam trazer a expressão das singularidades étnicas, a coloridade das peles, os fenótipos e as representações necessárias dos povos em suas diversidades. Devem evidenciar a relação de reconhecimento de sua identidade e de pertencimento à nossa sociedade, a partir do resgate de suas potencialidades e valores e, assim, reconhecer-se representado em sua singularidade. Devem, ainda, pensar um caminho com as disciplinas, nos cursos de Arteterapia, voltadas para esta multiculturalidade, seu arcabouço teórico, seus símbolos e manifestações arquetípicas, na arte, nos mitos, nas religiões de matriz africana, na cultura indígena e nas representações dos povos do norte ao sul, deste país imenso que é o Brasil. A arte, conforme Barreira e Brasil (2012, p.19), é: “Uma inesgotável fonte de criação que pode atrair, desenvolver e emocionar o ser humano, podendo levá-lo a um mergulho dentro de si mesmo em busca de suas verdades”. Resgatar esses conhecimentos, reconhecer as riquezas culturais de nossos ancestrais é uma maneira de manter a tradição e a memória coletiva, contribuindo para a construção da identidade cultural do indivíduo e da sociedade. A Arteterapia decolonial ainda é um grande desafio, em um compromisso ético e político para uma Arteterapia verdadeiramente ampla e inclusiva. “Spinoza diz que não há potência que não seja em ato […] A toda potência corresponde uma capacidade de afetar e ser afetado, de modificar e ser modificado”. (FUGANTI, 2016). Leva-nos a considerar, que a potência da imagem, em Arteterapia, vem como uma passagem, um fluxo de sentimentos, que necessita do ato, do movimento, da possibilidade de registro. Por isto, é necessário que o Arteterapeuta, ao entrar em contato com as etnias raciais, se sensibilize com o modo como compreendem o mundo, e possibilite o expressar criativo, oferecendo com sua mediação e contribuição de trocas, a reflexão necessária à busca de representação da identidade étnico-racial, autoconhecimento e empoderamento, com orgulho de sua representatividade. É fundamental perguntar-se: para quem e como o seu trabalho alcança uma Arteterapia decolonial? Questionar constantemente sua relação consigo mesmo e com o Outro, numa prática antirracista e decolonial que o liberte de limites e crenças importadas.
Referências:
ALMEIDA, S. L. de. (2018). O que é racismo estrutural. MG. Ed. Letramento.
BARREIRA, M.; BRASIL, N. (2012) Arteterapia e a história da arte: técnicas expressivas e terapêuticas. RJ: Wak.
FRANÇA. E. E. (2019) Ailton Krenak e as “ideias para adiar o fim do mundo. Disponível em: https://amazoniareal.com.br/ailton-krenak-e-as-ideias-para-adiar-ofim-do-mundo/
FRANKENBERG, R. (2004). A miragem de uma branquitude não marcada. In V. Ware (Org.), Branquidade, identidade branca e multiculturalismo. RJ: Ed. Garamond.
FUGANTI, L. O Problema essencial do corpo. Disponível em: https://www.escolanomade.org/2016/02/25/aula-8/ acesso em
20/11/2022.
GAMBINI R. (2014). A alma ancestral do Brasil. Disponível em:: https://www.youtube.com/watch?v=ZPon2i7Ya18
GONZALEZ, L. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, RJ, v. 92. n.93,1988.
MENINI, N. C. R. (2021). Indesejáveis necessários: os ciganos degredados no Rio de Janeiro Setecentista. Tese de doutorado em História, apresentada ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFFRJ
PHILIPPINI. A.(2011). Grupos em Arteterapia. RJ. Ed. WAK
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Huni_Kuin_(Kaxinaw%C3%A1)
Rosangela Rozante – CRP 05/5024 – AARJ – 302/0507
Psicóloga clínica, Arteterapeuta pela Clínica POMAR, Especialista em Arteterapia pela UNIRIO, PósGraduada em Psicologia Analítica pela SBPA/RJ e UNESA. Coordenadora Geral dos Cursos de Introdução e de Formação em Arteterapia e Supervisora Clínica em Arteterapia do Núcleo de Atendimentos Sociais em Arteterapia, do Espaço Terapêutico Caminhos do Self – Artes e Terapias Integradas Ltda, que fundou e dirige desde o ano de 2000. Membro da Diretoria da Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro (AARJ). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ (2022). Desde o ano de 2018, é pesquisadora das relações étnicoraciais e suas diversidades, através do laboratório de pesquisa e intervenção antirracista – Porta da Lembrança, da PUC-Rio. Membro do coletivo “Rizoma” em saúde mental, nas práticas integrativas.
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