Ecoarte-terapia para tempos de transição

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Ecoarte-terapia para tempos de transição por Kate Parker


Um pedaço de algodão humedecido e uma semente de feijão nos revelam, nos primeiros anos da educação infantil, que a vida é tanto ciência quanto beleza e milagre, que nascer é seguir rumo à luz.
O tempo passa, a vida nos atravessa e nos tornamos capazes de perceber outras etapas e camadas deste experimento do primeiro setênio. Depois de algumas estações expandindo em direção ao Sol, raízes cada vez mais firmes no solo, certos brotos alcançam maturidade, atravessam fases de floração e frutificam. Alguns dos frutos, maduros, caem do alto do pé. Em poucos segundos, fazem o caminho inverso àquele feito (ao longo de muitos anos) pela árvore-mãe e alcançam o solo: voltam ao ponto de partida. E destes frutos, algumas sementes – herança e bagagem para o futuro – recolhem-se em si e morrem, para depois germinar.


Podemos chamar o hiato entre a morte do grão e seu brotar de tempo de transição. Esse período é uma preparação e uma promessa, para que renasça do passado o que ainda se faz necessário e emerja o novo – aperfeiçoado em forma e conteúdo – que traz um tanto daquilo que o futuro requer.
Não se trata apenas da história de como nascem as florestas ou de como se planta a eternidade. Os padrões expressos no ciclo que nasce, cresce, morre e renasce na semente se repetem em seres, grupos, ideias e movimentos manifestados na Terra, assim como no próprio planeta enquanto organismo.
No ponto em que nos encontramos hoje, em que se sobrepõem transições individuais, sociais, globais e planetárias, não é mais tempo de cuidar de si em negligenciando o outro, o nós, o todo. O reino vegetal, além de nos revelar como fazer isso, nos fornece ferramentas e as reflexões a seguir.


RECONHECER-SE ENQUANTO SER COLETIVO. Nos relacionarmos mais intimamente com outros reinos da natureza nos torna mais atentos ao fato de que integramos um todo e que, para se alcançar o equilíbrio enquanto indivíduos, é necessário que isso também se dê na comunidade em que estamos, nas diversas camadas da sociedade em que vivemos, em todos os reinos da natureza. A adoecimento de uma árvore afeta a floresta e as criaturas ligadas a ela. O mesmo se dá entre nós, humanos, e nosso entorno.

RESPEITAR NOSSA NATUREZA CÍCLICA. Determinados materiais da natureza, em especial do reino vegetal, não estão disponíveis durante todo o ano, como são os produtos das prateleiras de supermercado ou sites de venda. Embaixo da árvore; às vezes sementes, às vezes folhas, às vezes flores. Quando não são manipuladas em laboratório para aumentar a produtividade e resistência às pragas, as plantas expressam uma inconstância perfeita, alheia à produção linear a qual nos submetemos enquanto humanidade do século XXI. Lidar com a ciclicidade da vida – seja através da ecoarte-terapia, de uma horta, da observação da lua ou das marés – é um caminho para estarmos conscientes dos nossos próprios ciclos, de seu propósito e sua beleza, é aprender a amarrar as duas pontas do fio do tempo.


CELEBRAR A IMPERMANÊNCIA. Recorrer à natureza para expressar nossas realidades internas nos ensina sobre a serenidade diante de mudanças ocasionadas pela ação contínua do tempo. Afinal, os eco-materiais estão em constante modificação. Eles mudam de aspecto quando se desprendem da árvore ou planta de onde vêm e seguem ajustando cor, forma e textura do momento em que são colhidos até a hora de serem acolhidos na arte. E mesmo depois de concluída a ação expressiva e da obra finalizada, a transformação continua. Acompanhar com um olhar resiliente o tempo deixando seus traços na matéria também é sobre aprender a amar a cada instante o ser que nos observa através do espelho.

EXERCITAR NOSSA CAPACIDADE DE RECONHECER O BELO. Com frequência em nossa sociedade, aquilo que chamamos de “beleza” espelha-se em tendências eurocêntricas, comerciais e adoecedoras. No entanto, na natureza o belo está intricadamente ligado a servir o seu propósito no âmbito coletivo, a manifestar-se com plenitude e a expressar a perfeição de ser através de suas formas. Vivenciar a ecoarte-terapia é sobre aprender a se dar o tempo para apreciar essa harmonia estética dos outros reinos e estar atentos a como essa observação ressoa no que há de mais belo em nós.


EXPANDIR OS SENTIDOS. Mais do que permitir que reconheçamos realidades externas, os sentidos nos permitem acessar as manifestações interiores e memórias que tais percepções desencadeiam em nós. O cheiro da fruta comunica, assim como também o fazem a cor do solo e o som do vento atravessando a copa das árvores. Está maduro? Tem argila? Vai chover? No entanto, nossa capacidade de reconhecer e decodificar estas mensagens tem sido prejudicada pelo esvaziamento de seus códigos. Cheiros sintéticos, cores artificiais, sons que não acompanham o pulsar da vida. A ecoarte-terapia faz o caminho inverso: propõe o contato com materiais autênticos, que despertam nossos órgãos sensoriais com verdade e sutileza.


ALIMENTAR O GOSTO PELO EXPERIMENTO. A tinta pinta, o pincel direciona, a tela acolhe. Na arte tradicional, a função dos materiais e ferramentas é pré-estabelecida e cristalizada. Não é o caso da expressão artística através de eco-materiais. Nesta modalidade, a folha de uma árvore pode tanto produzir uma tinta quanto ser o suporte para um bordado, pode ser a matriz para uma xilogravura ou o elemento de uma colagem ou de uma instalação. E essa multifuncionalidade dos materiais do reino vegetal faz com que, quanto maior o contato com eles, mais acentuado o nosso desejo de experimentar e nossa capacidade de criar a partir de poucos elementos.


SILENCIAR. Vivemos em um mundo cheio de ruídos, sejam eles audíveis ou não. Nossa mente “fala” sem parar, estamos quase sempre pensando o ontem e o amanhã. Quando nos aproximamos da natureza, tanto em busca de materiais quanto de inspiração, acabamos por nos beneficiar também da presença reduzida de barulho e palavras desnecessárias, voltando nossa escuta para os seres silenciosos, que transmitem sua verdade e nada mais.
VALORIZAR NOSSO ENTORNO. Buscar no reino vegetal os materiais para ecoarte-terapia não é sobre viajar para lugares afastados dos grandes centros urbanos. É sobre exercitar uma observação mais atenta à natureza que nos cerca: árvores nas calçadas, plantas das praças, vegetação pelos caminhos que percorremos em nosso cotidiano. Diante deste exercício de expandir o olhar, de observar com inteireza, é natural começarmos a reconhecer belezas que nos passavam desapercebidas. Esta nova forma de ver fortalece nosso senso de pertencimento e nos tornamos potenciais guardiãs e guardiões, não só de florestas e reservas, mas de seres a nossa volta.


PRODUZIR MENOS LIXO. O objetivo da arteterapia não é produzir uma arte durável, mas valorizar e dar significado ao processo. Portanto, muito do que se produz acaba sendo descartado depois de certo tempo, ou mesmo enquanto gesto de ressignificação. Quando nos desfazemos de substâncias acrílicas, tintas tóxicas, materiais plásticos estamos produzindo um lixo cuja decomposição leva anos (às vezes séculos). Estas preocupações são reduzidas quando usamos elementos da natureza para nos expressarmos artisticamente. Descartar trabalhos pintados com pigmentos naturais – feitos com sementes, folhas e raízes – colados com goma caseira ou revestidos de verniz de linhaça, por exemplo, não deixa rastros indesejáveis no ecossistema. “Jogar fora” estas obras é simplesmente conduzi-las ao solo, ao seu lugar de origem, é permitir que elas “voltem para casa”.


REDUZIR “PETRODEPENDÊNCIA” – Coletar sob uma árvore os elementos que vão compor nossa arte é um pequeno gesto revolucionário. Quando optamos por trabalhar com aquilo que está disponível na natureza que nos cerca, colaboramos para a redução da “petrodependência”, que tanto mal tem feito ao planeta. Diferente do que acontece com materiais distribuídos com propósito comercial, a matéria prima que vem “direto da fonte” não precisa de embalagens plásticas, bandejas de isopor, nem filme de PVC, produzidos a partir do petróleo. Também colaboramos para reduzir a poluição e as pegadas de CO2 deixadas pelo transporte – movido por combustíveis não renováveis – entre o local de produção e o de venda.


DIVINIZAR A MATÉRIA. Fazer arte com materiais que não passam por processos de industrialização e comércio é um primeiro passo para deixarmos de considerá-los apenas meros produtos. É uma forma de reduzir a “coisificação da vida”: uma tendência humana a esvaziar – de seus valores e conteúdos subjetivos – aquilo que nos cerca. Sim, trabalhar com a natureza traz a possibilidade de reconhecer nela e em nós a expressão do sublime, de adentrar nosso templo interior. Divinizar a matéria para, em seguida, através da arte, materializar o divino.


REFERÊNCIAS E INSPIRAÇÕES: CAMPOS, José Maria Campos. Jornadas pelo mundo da cura. São Paulo: Pensamento, 1996. JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. In: Obras Completas de C. G. Jung, vol. X/3. Petrópolis: Vozes, 2011. JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1969 KRENAK, AILTON. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. PRIMAVESI, Ana. Agroecologia em contos. São Paulo: Expressão Popular, 2016. STEINER, Rudolf. Os doze sentidos e os sete processos vitais. São Paulo: Antroposófica, 2012. TRIGUEIRINHO. A formação de curadores. Carmo da Cachoeira: Irdin, 1993.


Kate Parker é arteterapeuta pelo Instituto Fenix, jornalista pela UFES, esquizodramatista em (trans)formação pelo Instituto Gregorio Baremblitt, dramaturga do coletivo feminino Elas Tramam, performer com propostas voltadas para a expansão da consciência, (re)conexão com os outros reinos da natureza e ocupação poética de espaços públicos. É a idealizadora e facilitadora das propostas ecoarte-terapêuticas: Guardianah, Performance Curativa, Entre Reinos e Ecoarte para Terapeutas e Educadores.

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