A teoria das cinco peles de Hundertwasser: constribuições para o processo arteterapêutico

postado em: Blog | 0

A TEORIA DAS CINCO PELES DE HUNDERTWASSER: CONSTRIBUIÇÕES PARA O PROCESSO ARTETERAPÊUTICO

Clarice Duarte Rangel

            A arte do artista Friedensreich Hundertwasser impressiona pelas cores vivas de suas pinturas que reflete a sua paixão pela natureza e a sua forma cambiante de enxergar e agir criativamente no mundo. Sua obra afirma a inseparabilidade existente entre a arte como ofício e o modo do artista de ser e estar no mundo. Arte-vida foi uma premissa ímpar para o artista, uma afirmativa que se traduz em atitudes na busca de caminhos autossustentáveis para a construção de si, do outro e de mundos. A criatividade seria a sustentação dessa busca incansável. Para Hundertwasser, é fundamental ver nos processos do viver, a potencialidade da arte.

A sua trajetória de vida é marcada por ressignificações simbólicas através da arte – ele que teve sua família assassinada pelos nazistas e a perda de seu país de origem durante a guerra – torna o seu próprio nome um gesto simbólico de afirmação autoral, um mergulho fundo na autopoiese. Conforme nos explica o autor Restany (2003, p.16):

O sobrenome Hundertwasser, que ele tornou célebre nos outros cantos do mundo não é o seu verdadeiro nome. Seu nome de registro é Friedrich Stowasser. E é justamente em 1949 que ele adopta o nome de Hundertwasser. “Sto” significa “cem” (Hundert) em russo e em todas as línguas eslavas. (…) Em 1968, em Veneza, onde vive preocupado com o seu barco, faz nova amálgama: Friedensreich (reino da paz) Hundertwasser Regentag (dia de chuva) passará a ser seu nome completo.

O nome representa os símbolos que garantem a sua existência poética na vida mundana. Com o barco chamado Regentag – sua moradia, um símbolo significativo para compreender o seu desejo de conhecer o mundo – possibilitou-o de estar em diferentes culturas. Foi no mar a navegar sem se prender às terras e suas normatividades, que lhe permitiu traduzir o mundo de uma maneira singular ao conhecê-lo na sua diversidade. A sua teoria das cinco peles é reflexo e matéria desse seu processo “navegante” de autoconhecimento que tem a criatividade como força motriz.

As cinco peles de Hundertwasser representam campos simbólicos: a primeira, seria a epiderme; a segunda, o vestuário; a terceira, a casa/moradia; a quarta, o meio social/ a cultura, e por fim, a quinta é a pele planetária.

As peles são camadas relacionais do ser humano consigo mesmo e com o mundo exterior, que estruturam um pensamento ecológica e artístico dentro de uma concepção espiralada de consciência. Espiral representa aqui um caminhar circular, pois trata-se de compreender as camadas de consciência que se comunicam sem início e fim, mas na latência de uma permanência dos atravessamentos entre-peles.

Entende-se, também, que o pensamento que rege a teoria conecta-se com a necessidade de mudança de paradigma da relação humana com o mundo, conforme nos explica Rangel (2019, p. 19-20):

A teoria é elaborada a partir da metáfora da pele na relação humana em diferentes níveis de consciência intercambiáveis: psicológico, social e ambiental. O órgão “pele”, o maior tanto no tamanho quanto no peso do corpo humano, tem como funções a proteção (revestimento), absorção, secreção, regulação hídrica, termorregulação, armazenamento e sensibilidade. O austríaco Hundertwasser utiliza estas características ao explorar na poética de sua teoria a ideia de troca (de ambientes, de experiência, de afetos etc.), enfatizando que a construção do corpo se dá pela sua relação com o seu mundo interno e o externo. As cinco peles se relacionam tendo a arte como sua matéria e, desta forma, Hundertwasser defende o poder da arte na vida cotidiana, afirmando que através da criatividade, o ser humano pode estabelecer uma consciência ecológica – uma consciência das cinco peles que se comunicam.

O autor Didier Anzieu (1988) atribui ao signo “pele”, em termos psicológicos, a ideia de estados-limites com funções de: a proteção da individualidade e o lugar sensível de troca com o outro.  A primeira pele que nos reveste é biográfica, biológica e existencial. A epiderme, pele mais próxima de nossa essência, consiste em ser “uma zona membranosa mais próxima do EU profundo, aquela que encarna a nudez do homem” (RESTANY, 2003, p.20), assim como, também, uma barreira psicológica de proteção que irá estabelecer o que fica em contato com a superfície (o toque), o que é expelido, rejeitado e o que entra nos poros para ser absorvido. É, também, aquela que constitui a própria materialidade de si mesma, a sua fisicalidade que permite contatos, trocas e sensações como, também, protege e funciona como “um envelope psíquico” (ANZIEU, 1988, p.15).

A pele como lugar de sensações em que se imprime vivências; ela exterioriza reações de acordo com a sua sensibilidade interna predisposta ou não ao contato consigo e com o outro. Evidenciar a pele na sua condição primeira de ser uma região de sensibilidades dá visibilidade à fragilidade do encontro bem como à rigidez construída pela nossa biografia particular.

Já a segunda pele reveste essa primeira pele como forma de proteção de uma sensível construção identitária do indivíduo. Hundertwasser reforça nessa relação de primeira e segunda peles, o caráter mutante e transformador das diferentes fases da vida humana que influenciam diretamente nas sensibilidades das peles, fisicamente e existencialmente.

A pele em suas marcas, manchas, cicatrizes revela histórias de vida que no processo do viver e encontros com outras peles, internaliza sensações, memórias, cheiros que constroem uma identidade singular, um modo de ser no mundo. A escolha sobre aquilo que é usado para proteger as peles do frio, do atrito, do olhar, vai dialogando com a forma de receber essa proteção, ao mesmo passo, que as qualidades das vestimentas contam sobre a posição na sociedade.

A segunda pele seria, então, uma camada de consciência que contribui para a consolidação da personalidade do indivíduo. É uma pele que possui uma evidente posição no meio social, marcada pela distinção de classe econômica e social e, qualitativamente, a um tipo de individualidade de ser e estar no mundo.

A busca por esta individualidade dentro de uma perspectiva criativa e consciente é estudada e explorada plasticamente por Hundertwasser: o artista costurava seus sapatos, seus casacos de dupla-face, uma reversibilidade das peças, mostrando autoria e originalidade na sua vestimenta. O conceito de reversibilidade para Hundertwasser traduz a natureza osmótica do segundo nível de consciência. (RESTANY, 2003).

Para Hundertwasser, existem três males da segunda pele: a uniformidade, a simetria na confecção e a tirania da moda; o artista afirmava que, “a uniformidade do anonimato do vestuário traduz no homem a renúncia ao individualismo, ao orgulho de usar uma segunda pele criativa, original e diferente das outras.” (RESTANY, 2003, p.38).

O artista assumia uma postura crítica em relação à sociedade de consumo em que o descarte e o conceito de moda constroem uma indiferença à materialidade e aos processos de confecção e distribuição das mercadorias, assim como, corrobora para a construção da imagem de si perpassada por modelos padronizadores e homogeneizadores condizentes com a lógica do capital.          

Hundertwasser entende a segunda pele com uma estreita ligação com a quarta pele que desenvolve a ideia de identidade individual e social: “Na época dos hippies, dos skinheads ou dos drag queens, a segunda pele torna-se a maquilagem distintiva da quarta pele: sinal de pertencer a um grupo que consolida a sua identidade “diferente” pela adopção de uma moda.” (RESTANY, 2003, p.39).

Em seguida, na terceira camada de consciência, Hundertwasser problematiza a questão da moradia, da casa como a pele protetora do espaço interno e privado, relacionando-a com a necessidade de (auto)cuidado. Refletindo sobre esta pele, desenvolveu um trabalho de arquitetura, no continente europeu, de forma a explorar a sua ideia de que lugares felizes produzem saúde e pessoas felizes.

O arquiteto ou, como definiu Restany (2003), o “especialista do redesign das casas doentes” concretizou a integração do meio ambiente natural com a estrutura física de uma moradia trazendo soluções para a sua realização inserida numa proposta ecológica na execução de moradias. Além dos pedreiros e ladrilhadores que exerciam uma liberdade na composição formal, havia o sistema da casa-fossa em que o ciclo da água e esgoto foi estruturado junto à “árvore locatária” na moradia para complementar esse processo de limpeza dos excrementos humanos e este retroalimentar a árvore e a vegetação verde. A elaboração de arquiteturas verdes de Hundertwasser implementava um princípio de autossustentabilidade com os telhados verdes das casas em que plantações e animais eram integrados ao viver cotidiano dos seres humanos.

A liberdade de construção do espaço privado dialoga diretamente com o espaço interno do indivíduo, ou mesmo, a elaboração da extensão da casa como parte de si, uma pele constituinte de seu próprio ser que contribui significativamente para o estado de bem-estar do indivíduo. Desta forma, a autonomia no processo de criação desta terceira pele se torna primordial para a consolidação de pertencimento e reconhecimento de um ser criativo.

Já a quarta pele, sensibilizará para o meio ambiente que configura papéis sociais e culturais a partir de argumentos críticos sobre o conceito de nação, território e identidade coletiva. Assim, pensar a atuação do que Hundertwasser nomeará de “cidadãos do mundo”, será primordial para entender o alcance político desta pele, que diferente do que se possa problematizar, valoriza as particularidades culturais existentes no mundo global.

Nos trabalhos artísticos do artista, pode-se ver as pinturas e projetos gráficos de novas bandeiras identitárias de nações e de selos postais, com intuito de promover uma nova leitura do lugar, destacando a sua visão sobre a cultura e reelaborando sua relação com a sociedade. O autor Restany (2003) destaca que “a geopolítica de Hundertwasser repousa na identidade nacional, isto é, sobre o conjunto dos diferentes sinais que traduzem a diversidade específica de uma nação.” (p.76)

Por isso, Hundertwasser aponta a contradição existente no processo de aculturamento, ao destacar a importância de um posicionamento crítico sobre as manifestações culturais de massa que apagam tradições, mas, também, incentiva que o indivíduo possua a liberdade de reinventar mundos e repensar suas culturas.

E, por fim, a quinta pele a síntese de todas as camadas/ superfícies em suas relações tratando, especificamente, de uma mudança de percepção da vida no aprofundamento da ideia da pele planetária como aglutinadora das existências interdependentes que sofrem com as interferências das mudanças comportamentais humanas e ambientais.

Compreender a intencionalidade política que advém do campo da Arteterapia que associa o bem-estar social à capacidade autoral criativa do indivíduo, ganha escopo filosófico e suporte de atuação a partir de uma abordagem metodológica na teoria de Hundertwasser que nos provoca a pensar o nosso pertencimento ao mundo.

Uma reflexão sobre arte, natureza e cultura, em diferentes níveis de atuação do ser humano constrói uma consciência ecológica que pode proporcionar uma diversidade criadora no percurso de individuação do cliente, validando, assim, uma dimensão autossustentável para o seu processo de autoconhecimento. (RANGEL, 2019).

A teoria das cinco peles de Hundertwasser pode contribuir para o processo arteterapêutico tanto para o arteterapeuta que desenvolve uma consciência ecológica para construirmos casas internas e externas duradouras, resistentes às intempéries, saudáveis e felizes, quanto ao cliente que está inserido numa proposta de reciclagem de percepção e construção de mundos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZIEU, Didier. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1988.          

RANGEL, Clarice. A arteterapia e a ecologia profunda: uma consciência criativa através da teoria das cinco peles de Hundertwasser. Monografia (Pós-graduação em Arteterapia). Faculdade Vincentina/ Clínica Pomar. Rio de Janeiro, p.72. 2019.

RESTANY, Pierre. O poder da arte: Hundertwasser, o pintor-rei das cinco peles.TASCHEN, 2003.

MINIBIO:

Doutoranda em Artes, na linha Arte, Pensamento e Performatividade, pelo Programa de Pós-graduação em Artes (PPGArtes) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestra em Artes (2016) e graduada em licenciatura em Artes Visuais (2011) pela mesma instituição. Realizou pós-graduação em Arteterapia na Clínica Pomar/FAVI. Integrante do grupo de pesquisa O Espaço Crítico – Arte, Pensamento e Ação Educadora coordenado Prof. Drª Isabela Frade. Atua como professora de Artes Visuais na rede municipal do Rio de Janeiro.