A Arte como Catalisadora de Processos Internos

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Por Walter Boechat

As artes expressivas têm se revelado elemento fundamental catalisador de processos terapêuticos espontâneos, forças auto curativas da psique. Embora a interpretação verbal ainda ocupe um local prioritário na maioria das linhas teóricas da chamada psicologia de profundidade, as terapias não verbais cada vez ganham mais seu justo e merecido lugar. De início essas terapias se destacaram como o caminho de eleição para os pacientes muito regredidos, especialmente os pacientes psicóticos, com os quais a interpretação verbal se revela pouco eficaz e o acolhimento, o afeto, os momentos de silêncio, se tornam centrais. Aliado a esses fatores, as artes expressivas são meio de acesso seguro a essas camadas mais profundas do inconsciente cindido. Mas cada vez mais o tênue véu que separa esses estados psicóticos de estados não-psicóticos perde sua importância e mais e mais vamos descobrindo que as artes expressivas podem ser eficazes em todo tipo de paciente, mesmo naqueles que aparentemente têm sua vida regida pela normalidade social e adaptação.

Diversos pioneiros se destacaram no campo das técnicas não verbais em psicoterapia, dentro do viés da psicanálise ou não, como Margareth Naumburg, Ernst Kris, Margareth Lowenfeld, Dora Kalff, Nise da Silveira e muitos outros. Mas dentre esses Jung sempre foi tido como um dos mais importantes iniciadores de estratégias não-verbais como acesso ao inconsciente. A ênfase que deu a esse tipo de abordagem como meio terapêutico e expressivo sempre foi conhecida.  

 Também era do conhecimento do público a vastíssima cultura de Jung que se revelava em sua diversificada obra. [1] Pouco se conhecia sobre uma possível familiaridade de Jung com as artes expressivas, a não ser por referências suas à importância das artes expressivas no processo terapêutico e na prática da imaginação ativa, mas a publicação da cópia caligráfica do Livro Vermelho à maneira de um manuscrito medieval, com belíssimas ilustrações feitas pelo próprio Jung, surpreendeu a todos. Houve um grande interesse em se conhecer melhor a intimidade de Jung com as artes expressivas, o que levou os herdeiros de Jung que dirigem a Fundação das Obras de C. G. Jung a realizar uma bem organizada pesquisa sobre as relações íntimas de Jung com as artes expressivas desde sua infância. Essa pesquisa tomou a forma de uma bela publicação.[2]

Por essa pesquisa e pelo livro de memórias de Jung percebemos um interesse marcante desde a infância nas artes expressivas. Ainda menino de 10 anos esculpiu numa régua de madeira um homenzinho, pintando-o de preto, “com fraque, cartola e sapatos lustrosos.”[3] O homenzinho de madeira foi colocado pelo menino Carl no sótão de sua casa e sempre recorria a ele em momentos de incerteza ou insegurança. Também construía imagens de cidades, torres, cenas de batalhas com frequência, utilizando lápis de grafite ou bico de pena. Às margens do lago brincava com seixos e argila, fazendo imagem de cidades. Essa atividade expressiva foi retomada por Jung em seus momentos de incerteza durante o período chamado de “confrontação com o inconsciente” de 1913 a 1917. Ao voltar a construir pequenas cidades, com casas, torres e igrejas, e cenas expressivas com seixos e argila seus pensamentos se tornaram aos poucos mais claros, mais precisos. A discipula de Jung Dora Kalff, influenciada por essas experiências criativas de Jung, criaria mais tarde o método terapêutico de grande eficácia, a terapia da caixa de areia.

A presença do pensamento altamente imaginativo no menino Carl não é surpresa, visto que é típico da criança o pensamento mágico, os amigos imaginários e a intensa ligação com contos de fada. Dieckmann (1986) já se deteve na relação do conto de fada preferido de infância e o processo de individuação em geral, após a entrada na adolescência a maioria das pessoas deixa para trás o rico universo do pensamento mitológico e simbólico, tolhida pelas exigências da adaptação ao mundo externo, competições de todo tipo, a vida amorosa e sexual. Chama a atenção no caso de Jung que os devaneios e imagens internas continuem a desempenhar um papel bastante ativo na adolescência e vida adulta, sendo o próprio fundamento   para os processos criativos da imaginação ativa. Um exemplo dessa forte persistência do imaginal é a recorrência na adolescência e mesmo  na vida adulta da certeza de possuir duas personalidades, as quais chamou de personalidade número1, mais ligada ao mundo consciente, e a personalidade número 2, expressão de uma identidade secundária, inconsciente.

Com frequência as artes expressivas foram auxiliares importantes em momentos de transição ou em seu processo criativo. Em geral, Jung preferia técnicas lentas, nas quais a obra tomava forma através de trabalho meditativo, em guache em papel e pergaminho e mais tarde em esculturas e relevos em madeira e arenito. (Hoerni, 2019 in: Hoerni, Fischer, Kaufmann, 2019, p. 15). O próprio Jung, quando se sentia travado em sua criatividade, trabalhava uma pedra ou pintava um quadro. Como o próprio Jung lembra em sua autobiografia, “tudo o que escrevi esse ano (1957) emergiu do trabalho com pedra que fiz após a morte de minha mulher.” (Citado por Hoerni, op. cit., p. 15.)

As artes expressivas fizeram parte portanto de toda a vida criativa de Jung e como é de se esperar, seu método terapêutico é um reflexo de sua vida criativa: Jung, sua vida, sua obra. Como em todo trabalho criativo, a obra de um autor é o espelho de seu processo pessoal.

O eixo do processo terapêutico junguiano é o método da imaginação ativa desenvolvido durante a escrita do Livro Vermelho. E nesse trabalho com o imaginal as mãos exercem um papel fundamental. Considero o método junguiano uma autêntica liberação das mãos. Há uma fantasia que domina toda a tradição da modernidade ocidental em que a mente está relacionada unicamente no cérebro. Jung em seu trabalho criativo na pintura e nas esculturas na madeira e pedra, mostra a importância das mãos na liberação de processos psíquicos inconscientes. Nise da Silveira, discípula de Jung, baseia seu método de tratamento de pacientes psicóticos que chama emoção de lidar nas atividades ocupacionais com uso intenso das mãos. O psicótico delira porque é tomado por complexos inconscientes que invadem sua psique consciente. Pelo método expressivo as mãos exercem papel fundamental, canalizando a energia psíquica para os objetos de expressão quer sejam pinturas, modelagens, desenhos e colagens. Bachelard já expressara com propriedade a importância das mãos na canalização do devaneio e do imaginal.[4]  

Podemos verificar a importância das mãos durante o processo artesanal de produção do Livro Vermelho. Jung produziu um manuscrito à moda medieval onde a própria tinta foi a têmpera, tintura produzida pela mistura de pigmentos com a clara de ovo. A têmpera adornou altares medievais antes mesmo do uso da tinta à óleo, o que dava a esses adornos religiosos um extraordinário brilho místico. Além das detalhadas ilustrações em têmpera, a própria escrita do livro em letras góticas  adornava as suas páginas de forma artesanal. Ilustrações e escrita envolvem, portanto, um intenso trabalho com as mãos que favorece ainda mais o devanear, a emergência de personagens simbólicos e os diálogos polifônicos constantes.

Esse processo manual de contato com as imagens é transposto para o nossos consultórios sempre que propomos artes expressivas não verbais para o diálogo com o inconsciente. Considero particularmente importante o analista encontrar o timing preciso, o momento certo de um processo terapêutico para propor uma técnica expressiva, seja qual for. Se o momento não for adequado, se houver uma precipitação contra-transferencial do analista baseada em suas próprias expectativas e não no próprio processo do paciente, esse se fechará, evitará se expressar de forma que não a verbal e terá dificuldade em aceitar futuras propostas de artes expressivas em seu processo. Um dos momentos que considero mais interessantes para se ter uma abordagem não verbal é quando o analisando está vivenciando ou relatando intensa emoção. Esses processos emocionais promovem um abaixamento de nível mental com menor controle egóico, pois a consciência está sob a influência de complexos afetivos de diversos tipos. Tive diversos exemplos na clínica desse processo de expressão de emoções primitivas, como um jovem que procurou terapia com queixas de agressividade indiferenciada. Um dos sintomas foi um soco aparentemente sem razão que dera em mesa de sua casa quebrando objetos. Sugeri que voltasse àquele momento de raiva e desenhasse a emoção que sentia então. Na folha de papel apareceram de forma espontânea rabiscos a princípio ininteligíveis, mas que o paciente pode dialogar de forma imaginativa com eles e descobrir significados que muito o ajudaram na descoberta de sentido do seu processo.

Com a recente pandemia do coronavírus e a consequente implantação de terapia online, as estratégias expressivas não perderam sua força. Os pacientes desenham, fazem colagens, esculpem e enviam seu material por Whatsapp para ser discutido na próxima sessão. Mesmo durante a sessão online tem sido possível em minha prática a imaginação dirigida e o uso de desenhos, com razoável sucesso. Parece que a alma urge expressar-se de forma imagética não verbal e procura meios de fazê-lo, desde que o enquadre analítico seja receptivo, mesmo na virtualidade dos computadores.

Referências bibliográficas

BACHELARD, G. (2018) A poética do devaneio. S. Paulo: Martins Fontes.

DIECKMANN, H. (1986) Contos de Fada vividos. S. Paulo: Paulinas.

JUNG, C. G. (2010) O Livro Vermelho. Edição e introdução  de Sonu Shamdasani. Petrópolis: Vozes.

JUNG, C. G. (2006) Memórias, sonhos, reflexões. Prefácio de Sérgio Britto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

ULRICH, H., FISCHER, T., KAUFMANN, B. (Org.) (2019) A Arte de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes.

ULRICH, H. (2019) Imagens do inconsciente: uma introdução às obras visuais de C. G. Jung. In: ULRICH, H., FISCHER, T., KAUFMANN, B. (Org.) (2019) A Arte de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes.

Sobre o autor: 

Walter Boechat é formado em Medicina, Doutor em Saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Uerj. Formou-se em Psicologia Analítica no Instituto C.G.Jung de Zurique, Suíça, no período de 1974-1979. No Brasil, é membro-fundador e ex-presidente da Associação Junguiana do Brasil (AJB), onde atua como professor e conferencista em diversas capitais do país. Coordena e assessora as publicações da coleção Reflexões Junguianas da Editora Vozes e foi o revisor técnico da tradução do Livro Vermelho de C.G. Jung em 2010. 


[1] Seus collected works (obra coligida, escolhida, em tradução mais precisa, e não obra completa, como usualmente se diz.) Na verdade, a obra realmente completa do fundador da psicologia complexa ainda está vindo gradualmente à tona nas publicações da Fundação Philemon, na forma de seus diversos seminários, conferências na ETH (Escola Politécnica de Zurique), Correspondência inédita, O Livro Vermelho, Os Livros Negros e muitas outras obras.

[2] A arte de C. G. Jung. Editado pela Fundação de Obras de C. G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2019

[3] C. G. Jung, Memórias, sonhos e reflexões, p. 50.

[4] Vide a obra de Bachelard, A poética do denaneio.