Por Daniele Spada[1]
A função da arte não é a de passar por portas abertas, mas a de abrir portas
fechadas.
Ernerst Fischer
A função terapêutica da Arte desenha, na história, ensaios desde as representações artísticas lá do tempo das cavernas até as NFTs[2], aplicada às artes digitais, que vemos hoje. Representar, simbolicamente, a vida psíquica é uma necessidade humana. A humanidade vem desenvolvendo representações, por meio da Arte, para interpretação de suas questões internas.
Sabemos que a Arteterapia, a partir de uma metodologia específica, propõe a mediação de processos criativos que fortalecem aspectos da organização e interpretação pessoal, promovendo um caminho de autoaprendizagem socioemocional visando o bem-estar biopsicossocial do indivíduo. E que, para tal, o trabalho Arteterapêutico é caracterizado pela promoção da saúde e bem-estar por meio do uso das materialidades artísticas. Porém uma mudança emblemática aconteceu no trabalho arteterapêutico nos anos de 2020 com o regime emergencial, no período de quarentena/isolamento, em razão do COVID-19, coronavírus, em todo o território brasileiro.
Muitos arteterapeutas, antes desse evento, recorriam aos encontros presenciais, estabelecendo um setting terapêutico, onde as propostas terapêuticas mediadas pelas materialidades artísticas tais como colagem, desenho, pintura, entre outras, eram realizadas, para auxiliar no processo de individuação, cuja meta é o desenvolvimento da personalidade individual, singular indivisível. Poucos arteterapeutas, no entanto, viam no universo digital uma oportunidade para realizar o trabalho terapêutico.
Com o advento da pandemia mundial e isolamento social que se estabeleceu nos anos de 2020, essa prática foi afetada. Por hora, o atendimento não podia ser realizado de forma presencial, então, a União Brasileira de Associações de Arteterapia (UBAAT) criou um documento para estabelecer condições para que o trabalho arteterapêutico, com a utilização das TICs[3], pudesse ser eficaz para as pessoas que necessitassem. Naquele momento o Arteterapeuta se viu rodeado de tecnologias que ele não costumava utilizar no seu cotidiano, muito menos, pensava em usar em seus atendimentos. Reuniões por videoconferências, atendimentos online, materialidades artísticas digitais, mudanças paradigmáticas na forma de trabalhar. O que já estava sendo uma evolução tecnológica para alguns, para outros foi um choque tecnológico cultural. Mas como essa revolução digital e tecnológica aconteceu?
Estamos no século 21, e em sua primeira década vimos mudanças assombrosamente velozes com o avanço das TICs. Nas áreas de eletrônica e telecomunicações, principalmente com crescimento exponencial da internet e a difusão na informação, pudemos testemunhar a expansão das relações entre as pessoas por meio do uso dos smatphones[4], com seus incontáveis Apps[5], e das redes sociais[6].
A evolução dos Apps e das redes sociais foram responsáveis pela diminuição da distância entre as pessoas criando outro modo de conexão digital. Para os idosos, por exemplo, foi uma forma de encontrar amigos e estabelecer novos laços; para os profissionais liberais, uma forma de mostrar seu trabalho e estabelecer um novo mercado; para as personalidades, a vida privada se tornou pública em tempo integral.
E como os Arteterapeutas estão vendo essas mudanças no mundo digital? Mudanças tais como a palavra “amigo” que hoje, pode ser compreendida como um “seguidor” (pessoa que acompanha o perfil de outra na internet). Uma reunião de pessoas, que pode ser feita com cada pessoa em sua casa, basta um convite que se tornou um link[7]. A diferença da vida exposta online para a vida offline. Muitas vezes, os Arteterapeutas se sentem perdidos em meio a tantas mudanças.
Anomenclatura “real” e “virtual”, usada por estudiosos do assunto, como Pierre Levy em meados dos anos de 1990 está obsoleta, o mundo agora é phygital. [8] O mundo online se tornou “real” e deixou de ser um universo paralelo para fazer parte de nossas vidas no cotidiano. Hoje podemos pedir uma refeição online e ela chegará fisicamente para saborearmos; podemos ainda, marcar uma consulta pelo canal de telemedicina e seremos atendidos, mesmo que a consulta seja mediada pela tela do computador ou do celular. Com a evolução da tecnologia mobile, com seus inúmeros apps, a realidade e virtualidade, o mundo físico e digital se misturaram em um mundo phygital.
O registro de momentos, em fotos, vídeos e áudios mudaram a forma de nos comunicarmos e de nos expressarmos. Com a evolução dos apps de comunicação, como WhatsApp, essa mudança foi radical, em um instante podemos enviar imagens, áudios e vídeos, fazer reuniões e pagar contas. Os gifs animados e as figurinhas foram uma evolução dos emojis[9], para ajudar a compor o tom das mensagens.
Mudamos nossos hábitos, costumes, comportamentos e emoções nas relações pessoais, resultantes dessa interatividade. Uma das indicações dos profissionais de saúde, foi que o isolamento social não passasse para um isolamento mental. É muito importante nos mantermos distantes, mas conectados, para não perder a conexão com amigos e familiares, hoje facilitada pelos celulares e internet. No caso dos idosos, o mais produtivo é mantê-los ligados através da comunicação contínua que hoje pode ser feita de forma digital, salas de bate-papo, chamadas de vídeo, entre outros.
Como o isolamento social na forma física aumentou, e a necessidade de manter uma conexão com as pessoas também, o mundo digital passou a ser a saída para estabelecermos pontes entre nossas ilhas de vida. A conexão online pode ter sido a chave para não chegarmos ao isolamento mental. As reuniões de família, aniversários, o trabalho, e até tarefas cotidianas passaram a ser feitas mediadas pela internet.
Com esse novo comportamento online houve uma mudança no modo de se relacionar da população. Antes, as redes de apoio que eram os amigos que se encontravam, os familiares que estavam juntos, agora são quase simulacros digitais.
“Segundo pesquisa do instituto Ipsos, encomendada pelo Fórum Econômico Mundial e cedida à BBC News Brasil, 53% dos brasileiros declararam que seu bem-estar mental piorou um pouco ou muito no último ano” (BBC NEWS, 2021), mesmo com todas as formas de conexão online. Cabe ressaltar que a pesquisa foi realizada com mil pessoas de 16 a 74 anos, entre 19 de fevereiro e 5 de março de 2021, de forma online, o que limita o alcance da pesquisa à população mais urbana e conectada.
Essa tecnologia que aproxima também pode nos afastar de nós mesmos. Eis o paradoxo atual para o trabalho arteterapêutico. Ao passar tanto tempo conectados com o outro, nos desconectamos de nós mesmos. Com a pandemia mundial que se instaurou nos anos de 2020, esse paradoxo se intensificou e a pergunta título desse artigo se faz pertinente: Em um mundo phygital, qual o deslocamento necessário para o trabalho com arteterapia?
O trabalho arteterapêutico deforma digital não é uma tendência, já é uma realidade há algum tempo. Os arteterapeutas usam mídia digital, tanto como ferramentas de prática profissional, como e-mail, arquivamento, pesquisa, criatividade pessoal, networking e práticas publicitárias, quanto como ferramentas clínicas, incluindo fotografia, animação, vídeo, nos processos terapêuticos. No entanto há uma divisão entre os arteterapeutas, no uso da tecnologia no atendimento. Asawa (2009)[10] referiu-se às essa divisão como “obstáculos emocionais que os arteterapeutas enfrentam ao se envolver com a tecnologia” (p. 58) e uma “crescente desigualdade entre os que têm e não têm informações” (p. 59) devido à alta custos de aquisição e manutenção de mídia digital e ferramentas de computador.
Alguns arteterapeutas ainda estão cristalizados em processos que estavam habituados e mantém uma resistência ao uso de tecnologia, porém o código ético 6.2 da American Art Therapy Association (AATA) [11]exige que os profissionais “estejam cientes de seus próprios valores, crenças, atitudes e preconceitos em relação a si mesmos e aos outros e estejam cientes de outras perspectivas, versões culturalmente expansivas de desenvolvimento de identidade e políticas e questões e preocupações sociais ”(George et al., 2005, p. 132).
Mosinski [12](2010) observou, em um estudo de caso, que participantes adultos que usaram o vídeo como um processo terapêutico tiveram uma identificação com esse tipo de mídia, com isso, identificou os benefícios do aumento da alfabetização midiática, bem como da experimentação com múltiplas identidades, aumento da motivação e mecanismos específicos de domínio do ego por meio da mídia.
Partindo do princípio que um dos objetivos principais do atendimento arteterapêutico utilizando TICs é propiciar bem-estar emocional através do uso de linguagens expressivas diversas, e da comunicação simbólica através das atividades criativas de forma ampla e contínua (UBAAT, 2020)[13] entende-se que o mundo digital esteja presente no trabalho terapêutico.
A mídia digital pode exigir muitos níveis de envolvimento e “como outros processos artísticos, a produção eletrônica de obras de arte tem propriedades inerentes que desafiam e beneficiam o usuário em suas tentativas de atingir objetivos criativos ou terapêuticos” (Parker-Bell, 1999, p.180).[14]
Os arteterapeutas podem ser facilitadores informados da tecnologia, mas também potencialmente crédulos em uma rápida aceitação por parte dos atendidos. Podem ainda, ter pressa em usar essa mídia dinâmica para se sentirem inseridos em um novo contexto de atendimento. Todavia, precisam estar atentos à perícia e às sutilezas do equilíbrio entre as funções de técnico, artista e arteterapeuta.
O setting terapêutico digital possui seus desafios. O computador é uma ferramenta complexa em comparação com um pincel porque contém capacidades criativas potentemente misturadas com portais de informação e mundos virtuais fora do estúdio de terapia. Devido à presença da Internet e às múltiplas possibilidades disponíveis a um clique do mouse, o atendido pode perder o ou se desligar do terapeuta e do espaço terapêutico. O Arteterapeuta deve permanecer informado e vigilante quanto à presença perturbadora que os computadores podem representar para alguns atendidos no ambiente terapêutico e como limitar e aplicar diligentemente a mídia para construir rapport[15] e atingir objetivos terapêuticos. (Edmunds, 2012)[16]
É imprescindível por parte do arteterapeuta atenção e cuidado no atendimento digital, uma das premissas do trabalho terapêutico é a confidencialidade. Segundo a UBAAT:
“considerando que o profissional não estará no mesmo setting físico que a clientela atendida, a comunicação privilegiada pode sofrer alterações. Ainda assim, compete ao arteterapeuta a garantia da confidencialidade nas intervenções e orientações mediadas por TICs; o que pode ser feito mediante orientação específica quanto aos cuidados relacionados com a privacidade de quem será atendido” UBAAT (2020).
Para que essa confidencialidade seja mantida, algumas dicas são relevantes:
- Use uma conta profissional para gerar um espaço virtual de trabalho adequado,
- Se certifique da segurança dos dados transmitidos, use softwares que não coletem dados de seus usuários.
- Opte, sempre que possível, por atendimentos de forma síncrona, no entanto há a possibilidade de atendimentos de forma assíncrona. Nos casos de atendimentos assíncronos, o arteterapeuta deverá estabelecer e informar sobre o período máximo para responder à pessoa atendida, mantendo a comunicação.
- As chamadas de vídeo garantem a observação dos movimentos e expressões do corpo de quem está sendo atendido, isso traz uma oportunidade de análise mais completa por parte do arteterapeuta.
Enfim, o uso da tecnologia no mundo digital favorece o atendimento arteterapêutico desde que seja respeitado o Código de Ética dos Arteterapeutas. Que o atendido seja orientado, antes do início dos atendimentos, sobre seus riscos, limites e possibilidades, incluindo as questões de segurança digital e possíveis dificuldades operacionais. Que o arteterapeuta não faça a transmissão ao vivo da sessão arteterapêutica em nenhum canal de mídia, bem como expor as pessoas atendidas em redes sociais ou a terceiros (fotos ou vídeos).
Uma oficina aberta, ou uma atividade pública de arteterapia não é um atendimento terapêutico. Para esses casos, a divulgação em mídias ou redes sociais favorece a divulgação do campo da Arteterapia.
Para finalizar, todo arteterapeuta que está fazendo uso das TiCs, em seus atendimentos, são nossos convidados para um relato, por escrito, de suas experiências para facilitar pesquisas posteriores. As tecnologias nesse mundo digital se proliferaram como uma alternativa para os atendimentos em tempos de isolamento social, porém abriram uma grande porta para o crescimento e transformação nos atendimentos arteterapêuticos, e nunca podemos esquecer que somos indivíduos diferentes e uns sapatos que ficam bem numa pessoa são pequenos para uma outra; não existe uma receita para a vida que sirva para todos (Gustav Jung).
[1] Daniele Spada – Graduada em Pintura na Belas Artes pela UFRJ, com mestrado em Psicanálise, saúde e sociedade (UVA), estudando o Processo Criativo. Posteriormente encontrei em Jung, um caminho para promoção da saúde do corpo, mente e da alma, por meio da formação clínica em Arteterapia (POMAR).
Atualmente doutoranda em Design ainda estudando o processo criativo na articulação entre ensino e tecnologia.
[2] NFT é a sigla para o termo non fungible token, ou “token não fungível”. Eles são códigos numéricos com registro de transferência digital que garantem autenticidade aos seus donos. São como um tipo de assinatura digital que transforma qualquer tipo de mídia digital — um GIF ou JPEG, fotos, vídeos, mensagens, arquivos de áudio etc. — em um bem não-fungível, ou seja, a chave completamente única que garante a autenticidade do arquivo da arte digital.
[3] TICs – Tecnologia de Informação e Comunicação. Entende-se por TICs a “pluralidade de tecnologias (equipamentos e funções) que permitem criar, capturar, interpretar, armazenar, receber e transmitir informações” (Anderson, 2010).
[4] Os celulares deixaram de ser um dispositivo que recebia e fazia chamadas, ou escrevia breves mensagens de texto, para tornar-se um dispositivo multifuncional chamado smartphone, que com uma tela sensível ao toque, se tornou um microcomputador.
[5] App é a abreviação de aplicativo, que vem do inglês, application. Estes aplicativos são softwares criados por programadores para desempenhar diversas tarefas que geralmente envolve o processamento de dados.
[6] Entende-se, neste artigo, as redes sociais como meios pelos quais as pessoas se relacionam, tais como: Facebook, Instagram, LinkedIn, WhatsApp, Youtube…
[7] Elemento de hipermídia formado por um trecho de texto em destaque ou por um elemento gráfico que, ao ser acionado, provoca a exibição de novo hiperdocumento.
[8] O termo phygital vem da fusão das palavras em inglês physical (físico) e digital (digital). De forma simples, nada mais é do que a integração entre o mundo físico, com o mundo digital.
[9] Emoji é uma palavra derivada da junção dos seguintes termos em japonês: e + moji. Com origem no Japão, os emojis são ideogramas e smileys usados em mensagens eletrônicas e páginas web, cujo uso está se popularizando para além do país.
[10] P. Asawa. Reações emocionais dos arteterapeutas às demandas da tecnologia Arte Terapia: Jornal da
Associação Terapêutica American Art , 26 ( 2 ) ( 2009 ) , pp. 58 – 65
[11] J. George , BD Greene , M. Blackwell Três vozes sobre multiculturalismo na sala de aula de arteterapia Art Therapy: Journal of the American ArtTherapy Association , 22 ( 3 ) ( 2005 ) , pp. 132
[12] BB Mosinski. Videoarte e ativismo: aplicações na arte-terapia H Moon (Ed.) , Materiais e mídia em
terapia de arte , Routledge , Nova York, NY / East Sussex, Inglaterra ( 2010 ) , pp. 257 – 270
[13] Deliberações do Encontro Online da UBAAT (União Brasileira de Associações de Arteterapia) no dia15 de agosto de 2020.
[14] B. Parker-Bell. Abraçando um futuro com computadores e arte-terapia. Art Therapy: Journal of the American Art Therapy Association, 16 ( 4 ) (1999 ).
[15] Rapport é um conceito do ramo da psicologia que significa uma técnica usada para criar uma ligação de sintonia e empatia com outra pessoa. Esta palavra tem origem no termo em francês rapporter que significa “trazer de volta”. … Esta técnica é muito útil, porque cria laços de compreensão entre dois ou mais indivíduos.
[16] JD Edmunds. As aplicações e implicações da mídia digital na arte-terapia: um estudo de pesquisa Drexel University , Philadelphia, PA ( 2012 ).